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OPINIÃO: É preciso saber conviver com o fogo

Em um cenário de aquecimento global, o uso do fogo, mesmo eventual e em pequena escala, pode se tornar devastador

Brasília (DF), 16/09/2024 - Grandes focos de incêndio atingem áreas do Parque Nacional de Brasília. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
incêndios queimadas florestas bioma emissões de CO2 gases de efeito estufa aquecimento (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Brasília (DF), 16/09/2024 - Grandes focos de incêndio atingem áreas do Parque Nacional de Brasília. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil incêndios queimadas florestas bioma emissões de CO2 gases de efeito estufa aquecimento (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Da Redação
Da Redação

Redação Exame

Publicado em 27 de novembro de 2025 às 05h15.

*Marina Piatto e André Lima

Registros de fogo controlado por hominídeos revelam que esse elemento teve papel fundamental para uma série de atividades que permitiram a sobrevivência e evolução dos seres humanos, inclusive no desenvolvimento da espiritualidade, cultura e vida em sociedade.

Mas os tempos mudaram: em um cenário de aquecimento global, o uso do fogo, mesmo eventual e em pequena escala, pode se tornar devastador.

Temperaturas acima de 30°C, umidade abaixo de 30% e ventos superiores a 30 km/h — os chamados “três trintas” —, combinados com ondas de calor frequentes e secas prolongadas, criam as condições perfeitas para que um simples foco de calor, seja uma queima de lixo em beira de chácara ou uma singela fogueira para assar um peixe, transforme-se em um incêndio incontrolável.

Desde 2015, os índices de evapotranspiração têm aumentado na Amazônia, muitas vezes superando a reposição hídrica, profundamente impactada pelas secas consecutivas de 2023 e 2024.

Em outras palavras, a floresta está perdendo mais água do que consegue repor. Os impactos são claros: dados do World Resources Institute mostram que os incêndios responderam por quase 50% da área de floresta perdida em todo o planeta no último ano.

Esse não é um fenômeno exclusivo do Brasil. A Califórnia enfrentou o incêndio mais devastador de sua história em janeiro desse ano, e a União Europeia já teve dezenas de milhares de hectares queimados em meio aos picos de temperatura nesse verão.

Só na Amazônia, a participação do fogo na destruição da cobertura florestal triplicou em relação à média histórica.

Se não fossem os incêndios registrados em 2024, o bioma teria completado três anos consecutivos de queda significativa no desmatamento.

O chamado desmatamento a corte raso caiu 8% em 2025 em relação a 2024. No entanto, nesse mesmo período, os incêndios em florestais aumentaram 300%, impactando o resultado identificado pelo Deter, que registrou um aumento de 4%.

Os efeitos das queimadas vão muito além da destruição da biodiversidade da floresta, e atingem diretamente a saúde das pessoas que vivem nessas regiões, sobrecarregando o sistema de saúde e aumentando a vulnerabilidade das comunidades.

Em abril de 2023, um estudo publicado pela revista Nature Group registrou que as florestas evitam cerca de 15 milhões de casos de doenças cardiorespiratórias e cardíacas a um custo estimado de US$ 2 bilhões para o sistema público de saúde brasileiro.

Cada queimada libera toneladas de CO₂ na atmosfera, o que acelera as mudanças climáticas, deixa o ambiente mais seco e propício a novos incêndios, retroalimentando esse ciclo perigoso.

Não se trata de atribuir toda a culpa ao fogo. O grande problema é a forma como a ação humana alterou o equilíbrio climático da Terra.  Stephen J. Pyne, em seu livro Piroceno- De como a humanidade criou uma idade do fogo e o que virá a seguir, explora o caráter paradoxal desse elemento antes essencial para a renovação ecológica e para a própria evolução da vida, e que nas últimas décadas tem se transformado em uma ameaça destrutiva.

O Aterra, evento realizado em comemoração aos 30 anos do Imaflora, tratou da urgência e do desafio de enfrentar incêndios florestais seguindo uma lógica adaptativa em vez de emergencial. Trata-se de uma mudança total de paradigma.

Por exemplo, é necessário que a estratégia tradicional de combate a incêndios, baseada na supressão do fogo pelos bombeiros, equipamentos e mobilidade, seja reestruturada diante da magnitude dos incêndios florestais atuais.

Essa mudança de paradigma parte também do reconhecimento de que políticas bem-sucedidas no enfrentamento de outras ameaças à vegetação nativa no Brasil — como as de combate ao desmatamento — não se aplicam ao fogo.

Trata-se de uma dinâmica completamente diferente, que envolve outros atores e apresenta desafios adicionais: o fogo não respeita limites de propriedade, o que torna seu controle e, sobretudo, sua responsabilização, ainda mais complexos.

Nesse contexto surge a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo, que completou um ano em julho de 2025.

Ela representa um esforço institucional sem precedentes para estruturar ações de prevenção e monitoramento, envolvendo planejamento territorial, educação, participação de comunidades e atuação coordenada entre diferentes atores.

O manejo integrado do fogo não se resume a seu uso controlado, é sinônimo de uma estratégia focada na resiliência do território ao fogo: planejamento, prevenção, educação, monitoramento, mapeamento de risco, preparação, resposta rápida, responsabilização e regeneração ou recuperação das áreas afetadas.

A Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo reconhece, por um lado, que as estruturas governamentais, como Ibama e ICMBio, sozinhas, não têm condições (nem competência legal) de conter os incêndios florestais espalhados por todo território nacional; por outro, a importância de processos e iniciativas que surjam da base, tornando os territórios mais resilientes e capacitando as comunidades e proprietários rurais a agir como agentes de transformação.

Recursos e investimentos continuam sendo peças indispensáveis desse quebra-cabeça. Só o Fundo Amazônia aprovou e está investindo mais de R$ 550 milhões nos estados da Amazônia, do Cerrado e do Pantanal para fortalecimento institucional dos corpos de bombeiros.

Além disso, outros R$ 32 milhões foram aprovados pelo Fundo Nacional de Meio Ambiente em parceria com o Fundo Nacional de Direitos Difusos. Mas apenas recursos financeiros não bastam.

Muitos focos poderiam se limitar a simples pontos de calor e ser rapidamente controlados se houvesse uma mobilização comunitária envolvendo proprietários rurais, quilombolas, comunidades tradicionais e sociedade civil para evitar o uso do fogo durante o período proibitivo.

Nesse cenário, as brigadas voluntárias — já presentes em várias regiões do país — tornam-se fundamentais. São elas que mostram, na prática, como a participação ativa das comunidades é decisiva para que qualquer política de combate ao fogo seja realmente eficaz.

É preciso incluir no rol de considerações dessas ações estratégicas o fato de que determinadas áreas apresentam vulnerabilidades já conhecidas. Estudos indicam que áreas de floresta alteradas tendem a ser mais quentes e menos úmidas, tornando-se especialmente suscetíveis ao fogo.

Por isso, é fundamental que a política alcance as áreas em regeneração, que hoje somam entre 15 e 16 milhões de hectares na Amazônia.

Um dos maiores desafios dessa política certamente é a mobilização social em todas as esferas. O Brasil não está condenado a queimar suas florestas, mas depende de nós (governos, setor privado, comunidades locais e sociedade) transformá-lo em um território resiliente ao fogo.

A partir da nova Lei de Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo, aprovada em 2024, e das resoluções do Comitê Nacional de Manejo do Fogo (COMIF) que vêm sendo discutidas e aprovadas democraticamente, temos o mapa do caminho.

Temos também o instrumento: os Planos de Manejo Integrado do Fogo. Precisamos nos adaptar progressiva e rapidamente, bem como capacitar milhares de profissionais e líderes, passando a conviver com o fogo como parte da nossa nova realidade climática.

*Marina Piatto é diretora executiva do Imaflora;André Lima é secretário extraordinário de Controle de Desmatamento e Ordenamento Ambiental Territorial do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA)

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