"A descarbonização é um imperativo e está se tornando um imperativo econômico também. O Brasil se destaca porque pode receber muito powershoring", aponta pesquisador do Net Zero Industrial Policy Lab (AVB/Divulgação)
Repórter
Publicado em 23 de fevereiro de 2025 às 08h01.
A indústria siderúrgica existente no Brasil sofre com a enxurrada de aço importado da China, que tem um custo mais barato que o nacional, e pode ser ainda mais afetada com uma possível queda nas exportações de aço e alumínio devido às tarifas recentemente anunciadas pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Longe de ser um player estratégico no setor, o país pode, contudo, inverter esse cenário e dar as cartas como líder na produção de aço de baixo carbono a preços competitivos.
É o que aponta o Net Zero Industrial Policy Lab, laboratório da Universidade Johns Hopkins, dos Estados Unidos, que acaba de conduzir um estudo sobre a Nova Indústria Brasil (NIB) – a política industrial lançada em janeiro de 2024 pelo governo federal para retomar o protagonismo da produção de manufatura nacional.
De acordo com o relatório, o Brasil tem vantagens competitivas para desenvolver uma potente "indústria verde" até 2050 por causa de sua posição privilegiada em sete áreas: minerais estratégicos, baterias, veículos elétricos híbridos com biocombustíveis, combustíveis sustentáveis para aviação (SAF), produção de equipamentos para energia eólica, fertilizantes e aço com baixo carbono.
Mas, para isso, o Brasil precisa investir em políticas de descarbonização e no fortalecimento de setores estratégicos, como destacam à EXAME os pesquisadores Adriana Mandacaru Guerra e Renato H. de Gaspi, membros do grupo de trabalho do laboratório da Johns Hopkins focado no Brasil.
"A descarbonização é um imperativo e está se tornando um imperativo econômico também. O Brasil se destaca porque pode receber muito powershoring", diz Gaspi em referência ao fenômeno no qual indústrias podem se realocar para aproveitar uma rede energética limpa e barata.
"Se a produção com menos carbono é um imperativo econômico, uma das principais formas de cortar o carbono é através da matriz energética. A matriz energética do Brasil é muito propícia para esse tipo de coisa. O país ainda tem biocapacidade, que é muito importante para produção dos biocombustíveis, e uma base de manufatura. Todo mundo sabe que o Brasil se desindustrializou muito nos últimos anos, mas ele não parte do zero. O Brasil tem esse papel de possível potência de primeira linha nessa nova geopolítica energética", afirma o especialista em política industrial.
Na chamada geopolítica energética, a indústria nacional divide a corrida pela liderança com China, Estados Unidos e Rússia, segundo o estudo. Tim Sahay, codiretor do Net Zero, explica o termo como uma espécie de nova ordem, em que haverá os países exportadores de commodities e os que vão colher os lucros de uma manufatura avançada.
Essa nova geopolítica energética também favorece a reindustrialização do Brasil, como explica Guerra, diferentemente do contexto das décadas de 1980 e 1990, que impulsionou a desindustrialização e a dependência de commodities.
No ano passado, um estudo do Fundo Monetário Internacional (FMI) mostrou que superpotências como EUA e China adotaram abertamente políticas industriais com foco principalmente na transição energética. Mesmo países emergentes como México e Índia também estão investindo nisso.
Além disso, no Brasil, também pesa a favor o momento geopolítico, com a liderança de blocos como BRICs e G20 e país sede da COP30, a Conferência do Clima da ONU, neste ano.
"Os primeiros dois mandatos do presidente Lula e o primeiro mandato da [ex-presidente] Dilma [Rousseff] tinham projetos de políticas industriais que foram implementadas com relativo sucesso. Mas grande parte das limitações desses projetos de política industrial vinham de um contexto geopolítico que era menos propício para o desenvolvimento de política industrial. Enquanto agora, dada a questão da transição de matriz energética e da descarbonização como uma política global, as políticas industriais são mais debatidas no cenário global", afirma a pesquisadora do Net Zero.
O estudo aponta a Nova Indústria Brasil como uma política industrial mais correta e promissora do que as três políticas desenvolvidas sobre os governos anteriores do PT – entre 2016 e 2022, o Brasil não teve políticas industriais centralizadas.
Os pesquisadores, por outro lado, também identificaram três fraquezas na NIB: ampla demais para fornecer o foco necessário; risco de pulverização dos R$ 468,38 bilhões a serem alocados em muitas prioridades e falta de clareza sobre os mecanismos de colaboração entre governo, empresas, sindicatos, sociedade civil e especialistas independentes.
Para isso, o estudo chama atenção para uma espécie de "microtargeting", o que significa priorizar as Missões 3 e 5 da NIB que, segundo o documento, podem libertar o potencial de liderança do Brasil em indústria verde durante as próximas duas décadas.
"Não estamos propondo que o governo abandone setores, mas que o foco principal [da política industrial] seja a descarbonização, porque o Brasil pode ser líder. Vamos ser claro, tem setores tradicionais, como fertilizantes e aço, que estão nessa agenda [da NIB] e que são setores que o Brasil precisa e tem dificuldade", diz Gaspi.
"A indústria de aço tem muita concorrência de fora e importamos 85% dos fertilizantes, sendo que somos o quarto maior consumidor. Enquanto incentivamos e melhoramos esses setores, precisamos também descarbonizar, porque o Brasil pode não ser líder do aço normal, mas consegue ser líder do aço verde e do fertilizante verde. Não é sobre a balança de setores, mas a maneira da intervenção tem que ser pensada nesse novo contexto", complementa.
Atualmente, 74% da produção brasileira de aço depende de alto-fornos, um processo intensivo em carbono.
O estudo do laboratório americano indica que o Brasil tem o potencial para se tornar um líder na produção de aço verde por meio das duas principais rotas de descarbonização do setor siderúrgico: os fornos elétricos a arco (EAF) e o ferro de redução direta (DRI) com hidrogênio.
O setor de aço também é considerado crítico para o hidrogênio brasileiro, tido por especialistas como o principal insumo capaz de substituir o uso de combustíveis fósseis em setores que consomem muita energia. O Brasil, porém, ainda não possui plantas DRI em operação e precisa de investimentos para desenvolver expertise em redução direta a carvão e para o estabelecimento de um parque industrial de eletrolizadores.
Os pesquisadores detalham que a atual política industrial brasileira reconhece a importância estratégica do setor siderúrgico e o tratam como um possível projeto emblemático, mas ainda não incluiu políticas específicas para o aço de baixo carbono. Até agora, o foco tem sido na proteção dos produtores domésticos, com o aumento das tarifas de importação para 25% em 11 categorias de produtos siderúrgicos.
"A medida ajuda a estimular investimentos em um setor que sofre de excesso de capacidade ociosa, mas intervenções mais direcionadas são possíveis e necessárias para descarbonizar o setor e aproveitar o potencial do Brasil na produção de aço de baixo carbono", diz um trecho do relatório.
Outro ponto de cuidado é a falta de um mecanismo claro de coordenação e colaboração entre os diferentes órgãos do governo federal, com empresas, sindicatos, sociedade civil e especialistas. O estudo cita que há uma "dependência excessiva de financiamento", que mostra "que as políticas atuais não estão dedicando atenção suficiente aos problemas de coordenação".
"Porque além da criação, das condições de possibilidades dos recursos naturais e das bases de manufatura, é preciso também a criação de capital humano para sustentar a industrialização", afirma Guerra.
Um exemplo de iniciativa positiva, apontam, é a recente chamada pública da Finep e do BNDES para projetos de minerais críticos que, segundo segundo os pesquisadores, agrega valor a componentes intermediários como ânodos que podem alavancar os pontos fortes existentes do Brasil em processamento artificial de grafite e silício para a cadeia produtiva de bateria.
Sobre possíveis reveses globais na transição energética após a volta de Donald Trump à presidência e a saída dos EUA de diversas agendas verdes, os pesquisadores do Net Zero avaliam que, mesmo com apoio do país aos combustíveis fósseis, a chamada geopolítica energética seguirá em curso. Da mesma forma que com a descrença da Rússia em relação às energias renováveis.
"[Vladimir] Putin está passando por um momento de uma pequena desaceleração em relação à transição energética na Rússia. E isso é visto por nós no laboratório como um 'tiro no pé', tanto na Rússia quanto nos Estados Unidos com o Trump", diz Guerra.
Contudo, ainda segue no páreo a China, a maior parceria comercial do Brasil. Em 2024, o saldo da balança comercial bilateral foi favorável ao Brasil , mas essa relação tem um custo para a indústria nacional, apontam os especialistas.
"Porque a relação setorial entre Brasil e China é bastante desigual. Nós somos exportadores de commodities para a China e importamos produtos manufaturados dela. Mas se o Brasil quer se reindustrializar também precisa ter mecanismos diplomáticos. Então não dá para completamente evitar a tarifa, o Brasil vai ter que fazer proteções guiadas", diz Gaspi. "Se o Brasil ficar somente como exportador de commodities, ele perderá mais uma transição. E o Brasil teve oportunidades na sua história e essa é mais uma".