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Confiança democrática: o Brasil acredita no jogo, mas não nos juízes?

De acordo com o estudo, feito com base em dados do Latinobarômetro de 1995 a 2024, o apoio declarado à democracia no Brasil se mantém consistentemente acima de 60 pontos numa escala de 0 a 100

Brasilia - DF - Distrito Federal - Praça dos Três Poderes - turistas 

Foto: Leandro Fonseca
data: 27/08/2024 (Leandro Fonseca/Exame)

Brasilia - DF - Distrito Federal - Praça dos Três Poderes - turistas Foto: Leandro Fonseca data: 27/08/2024 (Leandro Fonseca/Exame)

Marcos Calliari
Marcos Calliari

CEO da Ipsos no Brasil

Publicado em 9 de junho de 2025 às 14h22.

Por mais paradoxal que pareça, os brasileiros seguem dizendo que preferem a democracia — mas poucos estão satisfeitos com ela. Esse é o diagnóstico que emerge do mais recente estudo longitudinal realizado pela Ipsos-Ipec, apresentado no XI Congresso Wapor Latinoamérica (a mais importante associação de pesquisadores da Opinião Pública). Ele joga luz sobre um dos grandes dilemas do nosso tempo: o descompasso entre o apoio normativo à democracia e a confiança nas instituições que a sustentam.

De acordo com o estudo, feito com base em dados do Latinobarômetro de 1995 a 2024, o apoio declarado à democracia no Brasil se mantém consistentemente acima de 60 pontos numa escala de 0 a 100, independentemente da corrente ideológica no poder — o que, em tese, é um bom sinal. Mesmo com trocas de governo, crises políticas e polarização crescente, a maioria segue dizendo que, sim, a democracia é o melhor sistema de governo. Mas basta andar dois parágrafos adiante no relatório para o otimismo arrefecer: a satisfação com o funcionamento da democracia permanece cronicamente baixa. O índice, que capta a percepção de desempenho do regime, raramente ultrapassa a casa dos 40 pontos. Em outras palavras: o brasileiro acredita no jogo, mas não gosta do placar.

Essa dissonância entre o que se declara e o que se sente com relação a prática política é tão reveladora quanto preocupante. Ela escancara um fenômeno que tem ganhado força não só no Brasil, mas em diversas democracias contemporâneas: o apoio “condicional” ao regime democrático. A democracia passa a ser aceita como valor porque é “o que se espera”, é a norma social, mas não porque é reconhecida por trazer bons resultados. Há, aí, um risco de esvaziamento — ou pior, de deslegitimação: a percepção de que a democracia não traz bons resultados faz o caminho para alternativas autoritárias se encurtar (precisamos falar de populismo em breve). E nem sempre esse caminho é trilhado com resistência: muitas vezes, ele é trilhado com alívio.

Na verdade, a percepção de que a democracia não está funcionando vem de outra perspectiva, segundo as modelagens do estudo Ipsos-Ipec: quanto maior a confiança em três instituições — o Governo Federal, o Poder Judiciário e o TSE —, maior a satisfação com o funcionamento da democracia. Isso não significa que outras instituições sejam irrelevantes, mas sim que essas três funcionam como termômetros do “humor democrático” da população. Quando há desgaste nesses pilares, o sistema como um todo perde tração. Isso indica que a confiança institucional no Brasil não se move apenas pela figura presidencial — ela depende, cada vez mais, da performance e da credibilidade coletiva do aparato democrático. Não adianta um governo ser popular se os cidadãos continuam acreditando que o Congresso é ineficiente, que o Judiciário é parcial, ou que o sistema é capturado por interesses que não são os seus.

Então, como vai o índice geral de confiança nas instituições (IGCI), onde tudo começa? E aí está o ponto mais delicado: ele também tem se mantido em níveis baixos há muito tempo (em uma escala de 0 a 100, a confiança nas instituições não passa de 50 há quase 20 anos!). Em 2024, atingiu seu nível mais baixo desde 2018(42 pontos).

Talvez esse seja o grande desafio da democracia brasileira neste momento: reverter a sensação de que o jogo é legítimo, mas a gente não confia no árbitro. A ideia de que “a democracia é boa, mas do jeito que está não funciona” tem servido de combustível para discursos populistas que prometem soluções fáceis, muitas vezes à margem — ou à revelia — das regras do próprio regime. E quando esses discursos encontram uma população desiludida, a erosão institucional ganha força.

O problema não é o ceticismo — o ceticismo é saudável. O problema é a descrença absoluta, a sensação de que nada muda, de que tudo é teatro, de que não adianta participar. Quando isso se instala, o espaço para o diálogo se fecha e o populismo encontra terreno fértil. É por isso que reconstruir a confiança nas instituições não é um luxo da democracia — é sua única chance de sobrevivência.

Claro, não se reconstrói confiança com marketing. A pesquisa aponta claramente os fatores que corroem esse vínculo: corrupção, desigualdade, ineficiência, crises econômicas e polarização. Ou seja, a confiança não depende só de boas intenções — ela exige entrega. Exige coerência, transparência, resultados concretos. E exige também uma disposição das instituições para dialogar com uma sociedade que está mais crítica, mais conectada e menos tolerante a promessas vazias.

Se há algo que o estudo da Ipsos-Ipec nos ensina é que não basta “ter democracia” — é preciso fazer com que ela funcione. E fazer funcionar, neste caso, é garantir que as pessoas se sintam ouvidas, protegidas e representadas. Que elas não apenas digam que preferem esse regime, mas que possam vivenciá-lo como algo que vale a pena defender — não por obrigação moral, mas por experiência prática.

O Brasil não precisa convencer as pessoas de que a democracia é importante. Isso, aparentemente, elas já sabem. O que o país precisa é mostrar, na prática, que ela ainda pode dar certo. E para isso, as instituições centrais da nossa República têm um papel decisivo. Se elas falharem em restabelecer a confiança — ou pior, se contribuírem para corroê-la — o custo não será apenas político. Será histórico.

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