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Opinião: O Brasil precisa olhar para o solo urbano para fazer suas ferrovias avançarem

Secretário-executivo do Ministério dos Transportes traz reflexão de por que a infraestrutura de ferrovias no Brasil permanece aquém do seu potencial

Secretário-executivo do Ministério dos Transportes: 'temos avançado no transporte ferroviário de cargas, mas ainda engatinhamos no transporte ferroviário de passageiros' (Stephen Simpson/Getty Images)

Secretário-executivo do Ministério dos Transportes: 'temos avançado no transporte ferroviário de cargas, mas ainda engatinhamos no transporte ferroviário de passageiros' (Stephen Simpson/Getty Images)

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Redação Exame

Publicado em 17 de julho de 2025 às 06h01.

Por George Santoro*

A agenda de infraestrutura ferroviária brasileira permanece aquém do seu potencial. Em um país de dimensões continentais e com demandas logísticas crescentes, é inquestionável que o modal ferroviário deve ser um eixo estruturante de desenvolvimento econômico e regional. Temos avançado no transporte ferroviário de cargas, mas ainda engatinhamos no transporte ferroviário de passageiros. Para avançar nessa pauta, precisamos integrar os debates sobre uso do solo urbano e mobilidade por ferrovia.

O Brasil tem hoje apenas dois serviços interestaduais de transporte ferroviário regular de passageiros, ambos operados em malhas predominantemente de cargas – a Estrada de Ferro Vitória a Minas e a Ferrovia dos Carajás.

Há oportunidade para avançar: o Ministério dos Transportes tem estudos em andamento para a identificação de trechos ferroviários que podem ser aproveitados para o transporte de passageiros. Esses estudos identificaram, preliminarmente, seis pares de cidades que podem ser conectados com investimento relativamente baixo, e alta viabilidade de tráfego. É hora, portanto, de mudar o cenário dos trens de passageiros no Brasil. Para isso, precisamos atuar com criatividade e visão de longo prazo, e aprender com quem já acertou.

Um dos casos mais bem-sucedidos no mundo vem de Hong Kong, onde a MTR Corporation adota o modelo “Rail + Property”. Lá, a concessão ferroviária não é apenas uma questão de trilhos e trens. O operador recebe do governo os direitos de uso e desenvolvimento imobiliário em áreas estratégicas no entorno das estações. Esses empreendimentos — residenciais, comerciais e de uso misto — são altamente valorizados pela integração ao transporte público.

Com isso, mais da metade da receita da MTR vem do setor imobiliário, e não da tarifa. É um exemplo robusto de como o valor urbano gerado por uma ferrovia pode financiar a própria infraestrutura que o criou.

Shenzhen seguiu caminho semelhante na Linha 4 do seu metrô, com uma concessão de 30 anos que incluiu direitos imobiliários sobre quase 3 milhões de metros quadrados. Em Copenhague, a prefeitura criou uma empresa de propósito específico para desenvolver terrenos públicos adjacentes ao novo metrô.

Essa empresa tomou empréstimos garantidos pela valorização futura dos imóveis, quitando a dívida com a venda dos terrenos. Até mesmo cidades norte-americanas adotaram modelos de captura de valor urbano para viabilizar projetos ferroviários, como na renovação da Union Station de Denver.

No Brasil, temos experiência com a exploração de receitas acessórias por concessionárias de serviço público.

A exploração de receitas não tarifárias derivadas de exploração imobiliária já foi inclusive usada para viabilizar concessões de infraestrutura. As concessões para os aeroportos de Jacarepaguá e Campo de Marte, por exemplo, previram a possibilidade de exploração econômica de espaços no complexo aeroportuário como fator relevante (e até preponderante) das receitas das concessionárias.

Para viabilizar nossos projetos de trens de passageiros, precisamos considerar e ir além dessas experiências, e criar um modelo alinhado à prática internacional.

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George Santoro, secretário-executivo do Ministério dos Transportes, em entrevista ao programa EXAME Infra (Exame Infra/YouTube)

O desenvolvimento urbano e ferroviário se potencializam. Toda nova linha ou estação ferroviária transforma profundamente seu entorno, gerando valorização imobiliária e novas oportunidades econômicas. Esse valor deve ser capturado e reinvestido no próprio sistema, potencializando o benefício coletivo gerado pelo projeto ferroviário.

O Brasil ainda trata a ferrovia, até mesmo as ferrovias urbanas e intercidades, como um investimento isolado. Isso precisa mudar.

A ferrovia deve ser pensada como vetor de transformação urbana, com instrumentos regulatórios, fiscais e jurídicos que permitam a captura e reinjeção de valor no projeto e no desenvolvimento ferroviário. É possível e necessário atrelar outorgas de uso imobiliário, zoneamento inteligente, parcerias com o setor privado e instrumentos como operações urbanas consorciadas para alavancar o investimento ferroviário.

O novo ciclo de concessões e autorizações ferroviárias oferece a oportunidade de incorporar essas experiências bem-sucedidas ao desenvolvimento de um modelo para alavancar o transporte ferroviário de passageiros. Mas isso exigirá mais do que vontade política.

Requererá visão territorial, articulação federativa e capacidade de inovar no financiamento. Os trilhos do futuro não se sustentam apenas com tarifa ou orçamento público. Eles se viabilizam quando o solo urbano, valorizado pela mobilidade, passa a ser parte da equação de investimento. Só assim os trilhos sairão do papel — e chegarão aonde o país realmente precisa.

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*George Santoro é secretário-executivo do Ministério dos Transportes.

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