Repórter de macroeconomia
Publicado em 19 de setembro de 2025 às 06h01.
Última atualização em 19 de setembro de 2025 às 09h51.
Em 10 de agosto, um domingo, milhões de brasileiros pararam tudo o que estavam fazendo para almoçar com a família. O gesto para comemorar o Dia dos Pais gerou um problema grave — e inusitado — no setor elétrico: como havia muito mais geração de energia do que consumo, quase houve um colapso, capaz de causar um apagão geral no país.
Outro susto ocorreu em 11 de maio, Dia das Mães, quando a oferta de energia também ficou muito acima da demanda.
"O problema são os feriados de domingo que envolvem eventos de família", diz Edvaldo Santana, ex-diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), de 2005 a 2013.
Nestas datas, além de as empresas e indústrias estarem consumindo menos energia, por ser um dia de folga, as pessoas também usaram menos energia em casa, o que levou a demanda nacional a patamares mínimos. Ao mesmo tempo, a geração de energia seguiu forte, puxada pelo aumento das placas solares nos últimos anos.
"O setor elétrico é como uma balança antiga de dois pratos. A oferta tem de ser na mesma medida exata da demanda", diz Santana.
Quando a oferta fica muito grande, é preciso fazer cortes na geração de energia para evitar sobrecarga. Os cortes são chamados no setor de 'curtailment' e têm se tornado um problema cada vez maior, sem solução fácil à vista.
Nesta sexta, 19, às 14h, a Aneel fará uma reunião com empresas de energia para debater soluções para a situação. Na pauta, estarão medidas de curto prazo para fortalecer o sistema elétrico e evitar riscos.
Para as empresas, o curtailment se tornou um problema financeiro. A energia que não pode ser colocada na rede de transmissão é perdida, assim como os lucros que ela traria. O problema é maior para a energia solar e eólica, já que a luz solar ou os fortes ventos de um dia não podem ser "guardados" para o dia seguinte. Sem poder gerar essa energia, as empresas perdem dinheiro.
Segundo a Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica), os valores perdidos já geraram um passivo de R$ 5 bilhões. Empresas também estão levando a questão para a Justiça, para buscar reparações pelos cortes forçados.
O problema, no entanto, vem aumentando. Em julho, as usinas de energia elétrica e solar tiveram de cortar 20% da energia que gerariam, segundo cálculos do Itaú BBA com base em números do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). Em agosto, o corte atingiu 26,4%.
Em 10 de agosto, o Dia dos Pais, a geração de energia solar e eólica chegou a 93% entre 11h e 14h. O pior momento foi entre 13h e 13h30, justamente na hora do almoço. Assim, foi preciso cortar 98,5% de toda a geração das usinas de energia eólica e solar naquele momento.
O sistema energético nacional é quase todo integrado. Assim, o ONS trabalha o tempo todo para balancear geração e demanda, de modo a evitar sobrecargas. Os cortes de geração se tornaram mais frequentes após 2023.
Naquele ano, em 15 de agosto, uma falha em parques eólicos e solares no Ceará gerou um apagão que atingiu 25 estados e o Distrito Federal. O blecaute em plena manhã de terça-feira afetou 27% da energia usada no Brasil naquele momento. A energia no Sul e Sudeste foi recuperada mais rapidamente, mas demorou horas para a retomada no Norte e Nordeste.
Telhado com energia solar em Gurupá, no Pará (Leandro Fonseca /Exame)
Depois disso, em 2023, a capacidade de exportação de energia do Nordeste para o Sudeste foi restringida de 13 mil MW para 8 mil MW. Como faltam linhas de transmissão, a limitação é feita para evitar sobrecargas no sistema e blecautes.
Os estados do Nordeste, onde há grandes projetos de energia solar e eólica já instalados, vêm pressionando o governo federal a acelerar a construção de novas linhas de transmissão.
"Estou impedido de ampliar parques eólicos e solares. Os que já existem estão sofrendo cortes de geração de energia. O que está faltando? Mais linhas de transmissão", disse o governador do Piauí, Rafael Fonteles (PT), em junho, durante um evento em Teresina.
Em 8 de setembro, entidades do setor elétrico divulgaram uma carta em que pedem medidas para conter os subsídios à micro e minigeração distribuída (MMGD). Neste modelo, consumidores, como casas e pequenas indústrias, podem gerar energia solar e enviar o excedente para a rede elétrica.
O modelo ganhou força com apoio de subsídios públicos e hoje é formado por 3,8 milhões de unidades geradoras, com 43 GW de capacidade instalada, segundo dados da Aneel.
"A política atual de micro e minigeração distribuída, apoiada em subsídios pagos por todos os consumidores, tem gerado retornos extraordinários a alguns investidores privados, mas à custa de graves distorções econômicas e riscos para a sustentabilidade do setor elétrico", diz a nota, assinada por entidades como a ABEEólica e mais sete entidades.
"Apelamos ao Congresso para que evite a perpetuação e ampliação de subsídios, que só aumentariam as distorções já existentes", prossegue o comunicado.
"O caminho deve ser o de construir mecanismos justos e equilibrados, em que a geração distribuída também assuma parte da solução dos problemas que provoca — como os cortes forçados de produção, a volatilidade de preços e a injustiça social criada pela transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos", defendem as empresas.
Do outro lado, a Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar) critica os cortes e diz que há um desequilíbrio regulatório. "A Aneel criou normativas sobre os cortes renováveis que esvaziaram o direito de ressarcimento garantido pela lei 10.848/2004 e pelo decreto 5.163/2004, extrapolando os limites do poder normativo de uma agência reguladora", disse a entidade.
"A regulação e a operação do sistema elétrico criaram um ambiente de insegurança e elevada percepção de risco em relação aos investimentos em geração renovável, o que tem congelado projetos e afugentado novos empreendedores do Brasil", afirma a instituição.
A Absolar defende que haja investimentos para modernizar a infraestrutura elétrica, tanto em transmissão quanto em capacidade de armazenamento, e medidas para facilitar a instalação de projetos que aumentarão o consumo de energia, como o regime especial de tributação para datacenters, o Redata.
Em março, o Ministério de Minas e Energia criou um grupo de trabalho sobre curtailment, para estudar soluções para a questão.
No fim de agosto, o então secretário nacional de Energia Elétrica, Gentil Nogueira, disse em um evento que já foram feitos ajustes em sistemas, que permitiram aumentar a capacidade de transmissão em 1.400 MW, e que foram identificadas ações como reforçar a rede de transmissão no Nordeste, além de realizar leilões específicos para criar parques de baterias. Elas permitiriam armazenar a energia gerada em excesso, reduzindo o risco de sobrecargas.
Nogueira assumiu, na última terça-feira, 16, um dos cargos de diretor da Aneel. Procurada, a agência disse que não daria mais detalhes sobre a reunião desta sexta.
Para Santana, só um aumento das linhas de transmissão não resolveria o problema. "Se não aumentar a demanda, não tem o que fazer. Pode colocar redes de transmissão até a Lua", afirma.
Assim, na prática, seria preciso restringir a oferta, algo difícil de fazer, pois muitas empresas investiram dinheiro em novas energias e teriam prejuízos grandes com a mudança.
Uma ideia, adotada na Espanha, é fazer os novos geradores pagarem para colocar energia na rede quando há excesso de demanda, o que geraria um "preço negativo". Esse dinheiro pago pelos geradores seria usado para compensar outras empresas que aceitem conter sua geração naquele momento, como as hidrelétricas.
Ao mesmo tempo, para aumentar a demanda, alguns estados defendem a criação de mais data centers e centrais de processamento de dados no Nordeste, para usar a energia excedente para mover tecnologias como a inteligência artificial, que seguem com cada vez mais procura, até em festas de família.