Beatriz Pantaleão, diretora-executiva da Fundação Gol de Letra (Fundação Gol de Letra/Divulgação)
Repórter Bússola
Publicado em 18 de setembro de 2025 às 13h00.
“Eu fui recebida pelo CEO e estava numa expectativa enorme, aí ele falou ‘me conta um case de sucesso’. Falei que, se fosse ser um CEO de uma multinacional, não tinha nada para contar. Mas se sucesso fosse colocar um menino negro, favelado e LGBT dentro da UFRJ, tinha um case bem bacana. Ele ficou danado comigo. Não ganhei o patrocínio, mas tudo bem. Não abandono essa noção do que é uma carreira de sucesso”, conta Beatriz Pantaleão.
Cofundadora e diretora-executiva da Fundação Gol de Letra, Organização da Sociedade Civil (OSC) criada em 1998, Beatriz tem 30 anos de experiência no terceiro setor. Ela pode não ter conseguido o patrocínio da história que contou, mas sua postura conquistou o da Petrobras para a continuidade de um programa que eleva outras mulheres ao mesmo patamar de liderança feminina dela: o Programa de Formação de Agentes Sociais.
Atuando nas comunidades da Vila Albertina, em São Paulo, Caju e Barreira do Vasco, no Rio de Janeiro, o programa promove a formação de lideranças femininas em comunidades em situação de vulnerabilidade social. Abordando temas como cidadania, equidade de gênero, autoconhecimento e desenvolvimento pessoal, o programa empodera mulheres que podem se tornar agentes transformadoras em suas vidas e sua comunidade.
“Nós plantamos a sementinha para que elas disseminem essas ideias na comunidade. Afinal, elas terão uma voz muito mais ativa do que a minha voz ou a sua. Por quê? Porque elas vão falar isso com a vizinha dela e a vizinha dela vai ouvir com muito mais atenção do que se eu fosse falar”, Beatriz conta, enfatizando a metodologia por trás do programa.
As Agentes Sociais durante o curso (Fundação Gol de Letra/Divulgação)
As reuniões acontecem três vezes por semana. A formação leva dois anos e são dez mulheres por turma, que são selecionadas a partir de critérios como potencial de liderança, capilaridade na comunidade e disponibilidade de horário. As selecionadas recebem apoio psicológico e uma bolsa integral, para garantir sua participação e compromisso.
Luciene Tavares, moradora da comunidade do Caju, conta que voltou a estudar graças ao que aprendeu no programa, fazendo pré-enem e investindo em nova fase de sua vida. Aos 56 anos, ela retoma uma trajetória que foi interrompida pelo ex-marido.
“A mulher já nasce, né, com aquele estigma de ser aquela que cuida da casa, cuida dos filhos, de tudo. Muitas sofrem violência sem perceber. Escutam frases pejorativas, se menosprezam por isso e ficam na mesmice. O mais importante do curso foi aprender a cuidar de nós mesmas e entender que podemos sim, independente da origem, escolaridade ou outras coisas, correr atrás e uma vida melhor”, conta.
Luciene Tavares, (à direita), ao lado da colega de curso Daiane Ferreira do Nascimento (Fundação Gol de Letra/Divulgação)
Beatriz oferece um dado que ressalta a importância do suporte a esse grupo: 83,7% das famílias beneficiadas pelo Bolsa Família são chefiadas por mulheres. “Elas são a maioria em líderes familiares. É um grupo de pessoas que precisa realmente de um suporte maior. E a gente percebeu isso nitidamente”, conta sobre como começaram o projeto.
O Programa de Formação de Agentes Sociais acontece de maneira não oficial desde 2003, em São Paulo, mas foi formalizado e ganhou fôlego novo a partir de 2021, quando também começou no Rio de Janeiro. Ele está debaixo do guarda-chuva da iniciativa Inspiração Caju, que abrange outros projetos e que foi a única a ganhar o edital do Programa Petrobras Socioambiental depois de três anos de esforço.
Mas essa não foi a única conquista de Beatriz, ou Bia, como prefere ser chamada. Desde a criação, a Gol de Letra já conseguiu reconhecimentos como o da Unesco como organização modelo no atendimento a crianças em situação vulnerável, e também o Prêmio Itaú-Unicef de Educação Integral em 2013.
Atualmente, a Fundação atende mais de 6 mil pessoas de todas as faixas etárias. Bia conta que, em 27 anos de Gol de Letra, viu muita coisa mudar, mas o Brasil ainda precisa muito de organizações como a dela.
A frase de Jorge Amado e a determinação no desenvolvimento socioeconômico brasileiro estão gravados no DNA de Bia. Natural de Niterói, no Rio de Janeiro, ela é filha de pais professores, se formou em história na FGV-Rio e possui pós-graduação em ESG. Ela fundou a Gol de Letra ao lado do marido, o ex-jogador Leonardo Nascimento de Araújo, e os amigos Dirce Cristina Bellíssimo e Raí Souza Vieira de Oliveira, também ex-jogador.
Bia assumiu a posição de diretora-executiva em 2009, quando retornou ao Brasil após quinze anos viajando ao lado do marido. A Fundação começou baseando-se no conceito de contraturno, utilizando o esporte como veículo de aprendizado para crianças em situação de vulnerabilidade social e sem suporte do estado para atividades no tempo ocioso depois da escola.
Sob o comando dela, a Gol de Letra evolui sua metodologia, aos poucos criaram projetos para adultos e o Programa de Formação de Agentes Sociais surge como exemplo da efetividade da abordagem. Luciene conta:
“Quando veem a gente chegando, para entregar panfletos, para fazer algum evento em creche e afins, as mulheres ficam olhando o nosso uniforme e perguntam ‘como é que eu faço para fazer esse curso aí?’ Ser esse exemplo é a melhor coisa. Meus filhos fizeram curso de operador de computador na fundação e o mais velho trabalha na Globo hoje. Meu neto olhou pra mim pensando ‘se minha avó faz, então eu também posso’ e hoje está se formando também”.
Para Luciene, elas são os olhos e ouvidos da comunidade. Ela conta um caso onde, em sua atuação, as agentes perceberam a alta incidência de crianças com traços de neurodivergências, como TDAH e TEA, e elaboraram um projeto para mães atípicas.
“Tinha uma mãe que veio falar ‘eu me vi vendo o meu filho da mesma forma que essa menina do filme’ e chorou ali na sala. As Agentes Sociais conversaram e deram todo apoio. É muito amor, sabe?”, conta.
A metodologia de Bia funciona e as sementes germinaram e continuam germinando. Exemplo de liderança feminina no terceiro setor, ela segue formando outras líderes, mas a trajetória nem sempre foi fácil. Para ela, as coisas estão mais melhores, mas para que o ESG deixe de ser apenas uma sigla e passe a fazer diferença verdadeira, as empresas brasileiras ainda precisam mudar sua mentalidade.
Atual turma do Programa de Formação de Agentes Sociais (Fundação Gol de Letra/Divulgação)
“Antigamente, quando a gente falava terceiro setor, parecia que eu estava falando grego. Quando ia numa empresa, eu falava geralmente com o pessoal do Marketing ou com o pessoal do RH . Hoje em dia as pessoas já sabem o que é uma OSC, e as empresas têm setor de responsabilidade social. Mas eu acho que ainda é uma coisa muito embrionária, porque ainda existe um preconceito muito grande de empresas que não querem, por exemplo, trabalhar com lei incentivo”, Bia conta.
Apenas 39% das empresas brasileiras possuem uma área formal de gestão ESG. Segundo Bia, apesar dos avanços, ainda acontece de empresas acharem que a Gol de Letra é uma brincadeira, o que não é. A fundação não tem fins lucrativos, mas ainda é uma empresa com contabilidade, 120 funcionários com todos os direitos CLT, prestação de contas com o com o Estado e tudo que outras empresas têm.
A falta de entendimento dos demais setores é o principal entrave na captação de recursos e, para ela, o principal fator que atrasa o desenvolvimento idealizado por iniciativas de impacto social. “O ‘S’ do ‘ESG’ precisa estar enraizado na cultura. A definição da sociedade que só tem sucesso aquele que é o bem-sucedido que tá lá no topo, tem que mudar. Só porque a pessoa mora na favela ela não pode querer ser médica? E se ela quiser ser advogada? Por que ela não pode ter esse direito? Entendeu? Então é essa chavinha que tem que mudar na cabeça das pessoas”, conta.
Quanto mais cedo o olhar sobre quem tem direito de oportunidades ou o que realmente constrói uma carreira de sucesso mudar, mais cedo serão possíveis mais histórias transformadoras, como a da Agente Social Lenilda de Alencar.
“Melhorei muito como pessoa, como ser humano. Eu tinha muita dificuldade em trabalhar em equipe, de me sentir uma pessoa sociável. Meu filho foi morto em 2018 e tenho uma ferida que tá sempre aberta. Acho que esse curso chegou na hora certa. Tipo, foi um uma válvula de escape pra mim que tava em casa não tinha quase atividade nenhuma”, Lenilda conta.
Vítima de violência do estado, a moradora do Caju, de 55 anos, encontrou no Programa uma forma de aprender sobre gênero, ética, cultura e cidadania. Com a confiança adquirida, ela diz se sentir apta a participar de debates e a visitar lugares que normalmente não iria devido a um preconceito internalizado.
Junto com outras mães que fazem parte da Rede de Atenção a Pessoas Afetadas pela Violência do Estado (RAAVE), Lenilda está com viagem marcada para Brasília, para defender um projeto de lei.
“Eu nunca pensei em entrar no Teatro Municipal. Hoje, vou a qualquer hora se chamarem. Também não me via indo para Brasília falar com parlamentares, mas hoje eu me sinto capaz de conversar de igual pra igual”, conta.
A confiança dela, que agora é mulher líder e expoente da comunidade, é fruto dos aprendizados no Programa de Formação de Agentes Sociais. É resultado do companheirismo e da chance que ela agarrou de superar seu trauma.
Lenilda em festa junina organizada pelas Agentes Sociais (Fundação Gol de Letra/Divulgação)
“Foi depois de um evento que fomos comer uma pizza. Naquele momento que estávamos todas numa mesa, todo mundo rindo, sorrindo, todo mundo numa boa, que percebi que estava pondo a minha dor acima de tudo. Decidi que ia mudar e foi esse momento de felicidade que superou toda a minha mágoa”, conta.
Para Bia, os desafios serão sempre grandes, pois há vontade de fazer cada vez mais. Mas são histórias como a da Lenilda que fazem valer a pena o empenho.
“Tem um um rapaz que foi um dos nossos primeiros meninos da lá em 1998 e hoje ele é professor no exterior. Encontrei com ele e ele me abraçou e falou: ‘tudo que tenho hoje é por conta da Gol de Letra’. Esse tipo de encontro me dá um prazer muito grande. É minha maior conquista”, conclui Bia