As condições de trabalho mostram-se como um fator determinante para o alto índice de acidentes entre motociclistas de aplicativos (Rovena Rosa/Agência Brasil)
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Publicado em 7 de maio de 2025 às 07h00.
Última atualização em 7 de maio de 2025 às 19h16.
Por Richele Cabral, Diretora de Mobilidade Urbana da Semove*
Com participação de Rafael Falcão, engenheiro de transportes na Gerência de Mobilidade Urbana da Semove.
No contexto do Maio Amarelo — mês dedicado à conscientização sobre a segurança no trânsito — é fundamental refletir sobre os desafios enfrentados pelas grandes cidades brasileiras. Nos últimos anos, o Estado do Rio de Janeiro tem testemunhado um crescimento expressivo no uso de motocicletas, com um aumento de 30% de sua frota nos últimos 5 anos, segundo dados do DETRAN-RJ. Dentre os diversos fatores que explicam esse cenário, destacam-se a expansão dos serviços de aplicativo e a busca por maior agilidade no deslocamento urbano em uma cidade marcada por congestionamentos frequentes.
O aumento no número de motocicletas em circulação veio acompanhado de estatísticas alarmantes. Em 2024, as motos estiveram envolvidas em 77% dos acidentes de trânsito atendidos pelo Corpo de Bombeiros no município do Rio, totalizando 20.877 ocorrências de um total de 27.161. Além disso, os atendimentos a motociclistas nas unidades de saúde municipais cresceram 32% de 2023 para 2024, ultrapassando 19 mil casos de acordo com dados da Prefeitura. Diante desse cenário preocupante, surge uma reflexão necessária e urgente: vale a pena arriscar a própria vida, a integridade física e a saúde para economizar alguns minutos no trânsito?
Além das fragilidades inerentes ao modo de transporte, dadas as características de exposição do veículo e do condutor, as condições de trabalho mostram-se como um fator determinante para o alto índice de acidentes entre motociclistas de aplicativos. Muitos desses trabalhadores enfrentam jornadas exaustivas, buscando cumprir metas difíceis de alcançar em um sistema de recompensas que prioriza a velocidade.
Com o valor das corridas e entregas cada vez mais baixo e os custos com combustível e manutenção em alta, muitos motociclistas se veem obrigados a realizar um grande número de serviços por dia para garantir uma renda mínima que lhes permita o sustento. Essa corrida contra o tempo leva à imprudência na condução: ultrapassagens perigosas, excesso de velocidade e desrespeito às regras de trânsito tornam-se práticas comuns e arriscadas.
Para agravar ainda mais a situação, as plataformas digitais que intermediam esses serviços raramente oferecem suporte adequado em caso de acidente, deixando os trabalhadores desamparados em momentos de grande vulnerabilidade. Muitas vezes, esses motociclistas operam sem seguro, sem assistência médica adequada ou sem qualquer garantia de renda durante o período de recuperação, que pode ser longo e custoso. Nesse contexto, a escolha entre o sustento e a segurança torna-se um dilema cruel e cotidiano, com consequências dramáticas para a vida dos trabalhadores.
Além da responsabilidade individual dos condutores e das plataformas de entrega, é preciso voltar os olhos para a esfera pública e sua forma de conduzir a política de mobilidade urbana. A ausência de investimentos robustos e contínuos em transporte público de qualidade, que seja eficiente, acessível e seguro, acaba por empurrar uma parcela significativa da população para o transporte individual, como as motocicletas, que se apresentam como uma alternativa aparentemente mais viável.
Em vez de priorizar sistemas de transporte público como previsto na Política Nacional de Mobilidade Urbana, que fala sobre a “justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do uso dos diferentes modos e serviços”, muitos governos optam por medidas paliativas ou ineficazes, que acabam por estimular o uso dos modos individuais motorizados, deixando de investir na ampliação e modernização da infraestrutura do transporte público, ou em subsídios que tornem a tarifa mais acessível para a população.
O resultado dessa escolha estrutural é um modelo de mobilidade urbana que, paradoxalmente, acaba por favorecer veículos com maior emissão de poluentes por passageiro transportado e que ocupam mais espaço no sistema viário, como as motos, em detrimento de soluções coletivas que seriam mais sustentáveis, seguras e eficientes a longo prazo. Essa lógica de priorização do transporte individual motorizado alimenta um ciclo de insegurança viária e contribui para a manutenção da desigualdade no acesso ao direito fundamental de ir e vir. Em sintonia com os princípios do Maio Amarelo, é urgente repensar esse modelo. Promover mudanças estruturais na mobilidade urbana é essencial para salvar vidas, reduzir acidentes e garantir que todos possam se deslocar com dignidade e segurança pelas cidades.
*Richele Cabral é Diretora de Mobilidade Urbana da Semove – Federação das Empresas de Mobilidade do Estado do Rio de Janeiro. Engenheira civil formada pela UFMG, com Mestrado em Engenharia de Transportes pela Coppe/UFRJ e MBA em Gestão de Negócios pela FDC. Richele está na Semove desde 2003 implantou o bilhete único intermunicipal e municipal e contribuiu no desenho do sistema de transportes da cidade do Rio de Janeiro visando a Copa do Mundo de 2014 e olimpíadas de 2016 no Rio de Janeiro, além de estudos e planejamento dos BRTs. Atualmente é membro da Comissão internacional de Ônibus da UITP – União Internacional de Transporte Público e vice-presidente da UITP América Latina.
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