Combater a adultização é enfrentar um sistema que deliberadamente transforma meninas em alvos de exploração para garantir a manutenção de desigualdades. (martin-dm/Getty Images)
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Publicado em 25 de agosto de 2025 às 07h00.
*Por Evelyn Onofre, Gabriela Brumatti e Tashi de Fáveri
Fenômeno antigo volta ao centro do debate com casos recentes e expõe como a exploração da infância persiste, agora potencializada pelas redes sociais.
Há exatos dez anos, bem antes de um contexto de algoritmos evoluídos e de ferramentas de monetização, a sexualização de uma garota de oito anos tomou o centro do debate público sobre exposição de crianças nas redes sociais. Naquela situação, a então funkeira-mirim MC Melody surgia dançando e cantando em vídeos postados pelo pai com “forte conteúdo erótico”, como definiu o Ministério Público na época.
O recorte de dez anos mostra que os termos erotização e adultização não são conceitos recentes, nem fenômenos novos. Mesmo assim, a busca no Google por “O que é adultização?” atingiu seu pico histórico nos últimos dias, impulsionada por um vídeo do influenciador Felca denunciando casos semelhantes.
A adultização pode ser definida como a aceleração forçada do desenvolvimento infantil, fazendo com que crianças assumam comportamentos ou responsabilidades que não correspondem à idade, como a sexualização precoce promovida pelas redes sociais. Essa prática distorce a percepção que a criança tem de si mesma e do mundo, retirando-lhe direitos fundamentais da infância.
O tema, discutido há anos por coletivos feministas, só ganhou grande visibilidade recentemente justamente pela mesma via em que mais se dissemina: a internet. O salto de dez anos entre Melody e Felca mostra como a lógica de algoritmos e monetização não apenas reproduz, mas amplia o problema.
A ausência de mecanismos eficazes de moderação nas plataformas digitais faz com que os algoritmos premiem conteúdos de hipersexualização de meninas com maior alcance e engajamento. Isso transforma a infância em produto de consumo.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2025, apesar de avanços normativos, ainda há subnotificação e dificuldades na investigação de crimes sexuais digitais. A produção e distribuição de material de abuso sexual infantil aumentou 14,1% em 2024, passando de 5,5 para 6,3 vítimas por 100 mil habitantes de 0 a 17 anos. Quase 56 mil meninas foram vítimas de estupro de vulnerável em um único ano. Para cada menino vitimado, cinco meninas sofreram violência.
O cenário digital aprofunda essa vulnerabilidade. Em 2023, a SaferNet recebeu 71.867 denúncias de abuso e exploração sexual infantil online, recorde histórico. Em 2024, o Brasil foi o 5º país com mais denúncias, com cerca de 52.999 páginas reportadas. No Telegram, as denúncias de abuso cresceram 78% em apenas seis meses, com mais de 2 milhões de usuários inscritos em canais com esse tipo de conteúdo.
Isso acontece em um ambiente onde 88% de crianças e adolescentes usam redes sociais, sendo que 66% começaram antes dos 12 anos. As plataformas, ao invés de protegê-los, frequentemente os expõem a pressões consumistas e à sexualização precoce, acelerando ainda mais a adultização.
A adultização é um processo que acelera artificialmente a passagem de meninas da infância para a vida adulta. Não se trata de amadurecimento natural, mas de uma pressão social e patriarcal que cobra delas posturas e aparências adultas, frequentemente sexualizadas, antes mesmo que tenham condições emocionais e cognitivas para lidar com essas exigências.
Essa pressão não é neutra. Ela se alimenta de uma cultura machista que vê meninas como objetos de consumo e encontra na internet um aliado para reproduzir e amplificar expectativas irreais. Essa exposição precoce abre espaço para violências sexuais, psicológicas e digitais, aprofundando desigualdades.
Os dados são alarmantes: mais de 74% das vítimas de estupro no Brasil são crianças e adolescentes, a maioria meninas. Entre 2017 e 2020, mais de 179 mil meninas até 19 anos foram vítimas de estupro. Hoje, 54% dos adolescentes de 11 a 18 anos já sofreram violência sexual online, cerca de 9,2 milhões de jovens, e 94% deles não sabem como denunciar.
As consequências são devastadoras. Gravidez precoce, evasão escolar e até casamento infantil são efeitos diretos. Quando uma menina abandona a escola para cuidar de um filho ou para fugir do trauma, perde não só a educação, mas também a chance de construir autonomia econômica e ocupar espaços de liderança. Esse ciclo é funcional a um sistema que se beneficia da exclusão feminina e mantém estruturas de poder masculinas intactas.
É nesse cenário que surge o Meninas Cidadãs, não apenas como um projeto de formação, mas como uma resposta estrutural. Ele parte da ideia de que a adolescência deve ser vivida como etapa legítima de descobertas, vínculos e aprendizagens, e não abreviada pela adultização.
O projeto Meninas Cidadãs cria espaços de socialização e aprendizado onde meninas e adolescentes podem compreender seus direitos, fortalecer autoestima, desenvolver pensamento crítico e aprender a resistir às pressões sociais e digitais. Ele mapeia e sistematiza iniciativas de empoderamento de meninas em diferentes cidades, conectando-as com gestores públicos para influenciar políticas. Além disso, promove oficinas, redes de apoio e produção de conteúdos feitos pelas próprias meninas, criando um movimento coletivo para transformar normas sociais e garantir seus direitos.
No campo digital, as meninas tornam-se produtoras de narrativas: elaboram campanhas, criam conteúdos e compartilham mensagens de resistência. Essa prática transforma a internet de vetor de risco em ferramenta de mobilização, devolvendo às meninas o controle sobre sua imagem e voz. Ao reconhecer e nomear a adultização como violência, elas passam a construir estratégias de enfrentamento.
Mais do que proteção imediata, o Meninas Cidadãs devolve às meninas o direito de viver plenamente a infância e prepara o caminho para que ocupem, no futuro, os espaços de poder historicamente negados.
A ausência de enfrentamento direto à adultização revela como o Estado brasileiro ainda enxerga a infância feminina como secundária. Embora haja avanços em legislações contra a violência de gênero e crimes digitais, a proteção das meninas segue fragmentada, tratada de forma reativa e emergencial. O resultado é um conjunto de normas que atuam sobre as consequências, mas não previnem as causas. Não há, por exemplo, uma política estruturada que reconheça a adultização como problema social, cultural e econômico, tampouco a integra como prioridade em programas de educação, tecnologia e direitos humanos.
Nos últimos anos, o Brasil avançou em legislações voltadas ao enfrentamento da violência contra mulheres e meninas. O PL 370/2024 trouxe ferramentas para combater a violência psicológica e digital, inclusive quando associada ao uso de inteligência artificial; a Lei 14.994/2024, o chamado pacote antifeminicídio, ampliou a rede de proteção; a Lei 15.125/2025 instituiu o monitoramento eletrônico de agressores; e o PL 4.842/2023, que prevê campanhas educativas em grandes eventos, conseguiu enfrentar parte do problema, mas não chegou ao cerne da adultização, especialmente no ambiente digital.
Todas essas medidas são importantes, mas ainda insuficientes. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2025 revela que mais da metade das vítimas de violência sexual no país têm menos de 18 anos. O mesmo levantamento também aponta o avanço da violência digital contra meninas, especialmente negras e periféricas. O problema, portanto, não é apenas cultural, mas também uma questão de segurança pública, que exige políticas específicas de prevenção e proteção.
Além disso, a responsabilização das plataformas digitais permanece incipiente. Empresas de tecnologia lucram com o engajamento de conteúdos que exploram e sexualizam meninas, mas raramente são cobradas por sua omissão. A lógica capitalista das redes sociais transforma a infância em mercadoria, e sem regulação estatal efetiva, os algoritmos continuam operando como correias de transmissão da violência. O poder público, ao não intervir, torna-se cúmplice desse processo, reforçando a manutenção das desigualdades de gênero.
O desafio, portanto, é incluir na agenda pública políticas específicas para frear a sexualização precoce no ambiente digital. Isso passa por responsabilizar plataformas, fortalecer programas de educação digital e garantir apoio psicológico e social para meninas expostas a esse tipo de violência. Também implica compreender que leis e políticas públicas não podem ser vistas apenas como medidas punitivas, mas como instrumentos de construção de futuro. Iniciativas que unam regulação digital, educação midiática e fortalecimento comunitário são indispensáveis para quebrar o ciclo de adultização. Sem isso, cada lacuna legal e cada política não implementada se tornam muros invisíveis que isolam meninas de seu direito à infância e as afastam, desde cedo, da possibilidade de ocupar os espaços de liderança.
Combater a adultização não é apenas proteger a infância, mas enfrentar um sistema que deliberadamente transforma meninas em alvos de exploração para garantir a manutenção de desigualdades. Cada ausência de regulação, cada lei engavetada e cada política pública que não sai do papel significam vidas concretas expostas a violências. A neutralidade do Estado, nesses casos, é cumplicidade com o patriarcado que lucra com a submissão feminina e perpetua sua exclusão dos espaços de poder.
É por isso que o enfrentamento precisa ir além da denúncia moral e se traduzir em disputa política. A regulação das plataformas digitais não pode ser tratada como questão secundária, porque é justamente nelas que a adultização encontra terreno fértil para crescer. Garantir fiscalização, punições severas e transparência dos algoritmos é atacar a raiz do problema, e não apenas seus efeitos. Do mesmo modo, fortalecer projetos como Meninas Cidadãs é investir em uma geração que terá condições de transformar a experiência digital em resistência e devolver às meninas o direito de sonhar e existir plenamente como crianças.
Cada clique que sexualiza uma menina é um tijolo a menos no caminho que ela teria para chegar ao poder. Do mesmo modo, cada lei que deixa de ser implementada, cada denúncia que não é acolhida e cada escola que não recebe apoio adequado são barreiras erguidas para impedir que essas meninas avancem. Romper esse ciclo é tarefa coletiva, mas sobretudo um compromisso democrático: garantir que as meninas cresçam livres, com autoestima preservada e com todos os degraus intactos para subir até os espaços de liderança que historicamente lhes foram negados.
*Tashi de Fáveri é especialista de DEI e Inovação Social e Diretora de Operações e Gestão de Voluntárias na ONG Elas no Poder
Evelyn Onofre é jornalista e liderança na equipe de Gestão de Voluntárias na ONG Elas no Poder
Gabriela Brumatti é jornalista e liderança na equipe de Gestão de Voluntárias na ONG Elas no Poder