Carreira

A cultura tóxica do “sempre disponível” ainda está vencendo

Mesmo com políticas de bem-estar e discursos sobre equilíbrio, líderes seguem punindo quem se desconecta - e premiando quem se esgota

Pesquisa revela o viés silencioso que está minando a produtividade e moldando mal o futuro da liderança (Tero Vesalainen/Getty Images)

Pesquisa revela o viés silencioso que está minando a produtividade e moldando mal o futuro da liderança (Tero Vesalainen/Getty Images)

Joaquim Santini
Joaquim Santini

Pesquisador, consultor e palestrante sobre a vida organizacional

Publicado em 26 de junho de 2025 às 20h17.

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Responder e-mails no sábado à noite. Cancelar férias para “dar conta do projeto”. Manter o celular ao lado da cama. Se isso soa como comprometimento — temos um problema.

Nos últimos anos, empresas passaram a valorizar o equilíbrio entre vida pessoal e profissional. Programas de bem-estar, campanhas sobre saúde mental e jornadas mais humanas tornaram-se parte do discurso corporativo. Mas uma nova pesquisa revela um paradoxo inquietante: líderes que pregam o equilíbrio seguem penalizando, inconscientemente, os funcionários que praticam esse equilíbrio.

Ou seja, mesmo quando se reconhece que a desconexão faz bem, quem a pratica corre o risco de perder a próxima promoção.

Um estudo: 16 experimentos, 7.800 participantes

Essa constatação vem de uma pesquisa conduzida por Eva Buechel (University of South Carolina) e Elisa Solinas (IE University), publicada em maio de 2025 na revista Organizational Behavior and Human Decision Processes e também na Harvard Business Review Digital.

Foram realizados 16 experimentos controlados com 7.800 líderes e tomadores de decisão corporativa, que avaliavam pares de funcionários fictícios com desempenho idêntico, mas comportamento distinto fora do expediente:

  • Um deles deixava uma mensagem de ausência para o fim de semana;
  • O outro permanecia online e responsivo.

Mesmo reconhecendo que o profissional que se desconectava voltaria mais produtivo e focado, os líderes o avaliavam como menos comprometido, menos confiável e menos apto à promoção.

Um viés mundial

A descoberta mais inquietante? Esse viés foi observado inclusive entre gestores que afirmam valorizar o equilíbrio entre vida e trabalho. Muitos deles lideram programas de bem-estar em suas empresas — mas, no momento da promoção, favorecem o funcionário que nunca se desconecta.

Esse paradoxo mostra que o problema não está apenas nas políticas formais, mas nas normas culturais invisíveis que orientam a tomada de decisão. O viés pela disponibilidade total está profundamente enraizado, e contradiz os próprios valores que as empresas dizem defender.

A cultura do presenteísmo digital - Por que isso acontece?

Segundo as autoras, fomos condicionados a associar comprometimento à visibilidade constante. Quem responde fora do expediente, participa de reuniões noturnas ou abre mão das férias é visto como “engajado”. Já quem protege seus limites — mesmo entregando mais e melhor — parece “menos envolvido”.

Esse fenômeno é chamado de presenteísmo digital, e seus efeitos são perigosos. Ele distorce os critérios de mérito, premia comportamentos insustentáveis e cria um ciclo vicioso:

  • Os mais resilientes se esgotam;
  • Os que deveriam ser referência tornam-se invisíveis;
  • As futuras lideranças são formadas com base no sacrifício — não na excelência.

O custo real: produtividade, rotatividade e doença

Ao ignorar os benefícios da desconexão, as empresas colhem perdas concretas:

  • Queda de produtividade pela fadiga cognitiva contínua;
  • Aumento da rotatividade, já que os melhores talentos buscam ambientes mais saudáveis;
  • Crescimento dos custos com saúde ocupacional devido ao burnout e ao estresse crônico.

Segundo a Gallup, empresas com altos níveis de esgotamento apresentam 23% mais rotatividade e 41% mais absenteísmo. Promover uma cultura baseada na hiperdisponibilidade pode parecer sinal de excelência. Mas, no longo prazo, é um projeto fadado ao colapso humano e financeiro.

O que líderes podem fazer - agora!

As pesquisadoras oferecem cinco passos práticos para reverter esse cenário:

  1. Avalie quem você está promovendo
    Os profissionais mais valorizados são os que entregam com consistência — ou os que estão sempre disponíveis? Seja honesto com os critérios usados nas decisões de carreira.
  2. Redefina o que é comprometimento
    Estar sempre online não pode ser o novo padrão de dedicação. Avalie pelo impacto e pelos resultados, não pelo número de e-mails enviados fora do horário.
  3. Respeite — e imponha — o horário de trabalho
    Estabeleça limites claros para a comunicação fora do expediente. Ferramentas como alertas de envio fora do horário ajudam a reforçar esse limite.
  4. Implemente políticas formais de desconexão
    Em um dos estudos, mostrar uma política que incentivava fins de semana sem e-mails reduziu significativamente o viés contra quem se desconecta.
  5. Treine os gestores para reconhecer seus próprios vieses
    O preconceito contra quem “desliga” é, muitas vezes, inconsciente. A formação contínua em liderança é essencial para garantir avaliações mais justas e alinhadas com os valores da empresa.

A nova métrica da alta performance

É hora de revisar o que entendemos por comprometimento.

O profissional que sabe se desligar, recarregar e voltar com foco é mais valioso do que aquele que se desgasta tentando parecer indispensável. Se sua empresa realmente valoriza o bem-estar, precisa alinhar discurso e prática. Não basta permitir a desconexão — é preciso reconhecê-la como sinal de maturidade e alta performance.

No fim das contas, os melhores talentos não são os que se esgotam tentando provar seu valor. São os que sabem quando parar — e, por isso, entregam o melhor de si de forma consistente, sustentável e estratégica.

Sua empresa promove quem entrega mais — ou quem se sacrifica mais? A resposta pode estar moldando - ou arruinando - a próxima geração de líderes.

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