Carreira

OPINIÃO: Inteligência artificial não perde o sono. Eu e você, sim!

Para Rogério Chér, sócio fundador da Winx e da Devello, em tempos que as máquinas fazem quase tudo, os diferenciais humanos não serão mais técnicos, e sim existenciais

Homens e máquinas: competências que sobreviverão à automação são as relacionais, afetivas, interpretativas e moralmente complexas (Oli Scarff/Getty Images)

Homens e máquinas: competências que sobreviverão à automação são as relacionais, afetivas, interpretativas e moralmente complexas (Oli Scarff/Getty Images)

Da Redação
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Redação Exame

Publicado em 19 de novembro de 2025 às 15h39.

Última atualização em 19 de novembro de 2025 às 15h41.

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Por Rogério Chér, sócio fundador da Winx e da Devello

Houve um tempo em que “fazer o básico” era suficiente.

Bastava cumprir rotinas, executar funções previsíveis, reproduzir modelos estabelecidos e trilhar um caminho relativamente linear para construir uma carreira sólida. Esse tempo acabou. Hoje, o bom o suficiente já não é suficiente.

A automação, a inteligência artificial e a digitalização avançam em ritmo exponencial, assumindo tarefas que antes eram nossas e ocupando espaços que, até pouco tempo atrás, nos pareciam exclusivamente humanos.

Agentes de IA já convivem conosco no dia a dia e, em breve, farão parte das equipes que lideramos. Lideraremos pessoas e algoritmos, sistemas e inteligências artificiais que irão substituir grandes fatias do trabalho cognitivo, analítico e até relacional.

Diante disso, a pergunta que me acompanha, e que tem guiado muitas conversas com CEOs, conselhos e times de liderança, é direta: o que resta para nós quando as máquinas fazem quase tudo?

Aquilo que é demasiadamente humano

A resposta, para mim, é cada vez mais clara. Resta tudo aquilo que é humano, demasiadamente humano. Aquilo que nenhuma máquina pode ser. A tecnologia representa o “como” da mudança, mas nós representamos o “porquê”.

E esse “porquê” nasce da nossa imaginação, da nossa criatividade, da nossa sensibilidade moral, da nossa inquietação interna, das nossas contradições, da nossa capacidade de atribuir sentido às coisas, de nos indignarmos, de nos insurgirmos e de cuidarmos uns dos outros. É aqui que está a essência da contribuição humana para o futuro do trabalho.

A imaginação é o ponto de partida de tudo. Ela é a faculdade de criar imagens de coisas que ainda não existem diante de nós. A criatividade é o ato de transformar essa imaginação em possibilidade concreta.

A inovação é o movimento de transformar essa possibilidade em impacto real. E o empreendedorismo é a coragem de lançar essa inovação no mundo, enfrentando riscos, incertezas e a possibilidade real de fracasso.

Uma máquina pode replicar padrões, mas não pode romper com eles. Pode prever o futuro, mas não pode desejar um futuro diferente.

A criatividade humana nasce do espanto, do incômodo, do conflito, da inquietude e, como sempre digo, das nossas “cinco forças”: a impaciência, a inquietação, o inconformismo, a indignação e a insurgência. Nenhum algoritmo sente desconforto.

Nenhum sistema perde o sono porque algo o tocou profundamente. Mas nós perdemos. E é justamente isso que nos move.

Há outra dimensão ainda mais profunda que apenas nós carregamos: a imaginação moral. Máquinas não atribuem dignidade às relações humanas. Não compreendem o impacto emocional de uma decisão. Não percebem o que se passa no silêncio de uma sala. Não reconhecem a diferença entre fazer o correto e fazer o justo.

A autonomia moral é uma exclusividade humana. É ela que nos permite manter conversas difíceis, sustentar posições impopulares, defender pessoas vulneráveis, decidir não pelo caminho mais eficiente, mas pelo mais humano. É ela que faz de nós líderes, e não gestores de processos.

Serem que vivem histórias

Para além disso, existe no trabalho uma dimensão narrativa que a tecnologia jamais poderá ocupar. Somos seres que vivem histórias, e o trabalho, longe de ser apenas uma atividade técnica, é o enredo de quem nos tornamos enquanto contribuímos.

A IA executa tarefas; nós vivemos trajetórias. E em toda trajetória há medos, sonhos, apostas, fracassos, viradas e epifanias. Uma máquina não se apaixona por um projeto. Não celebra uma conquista em equipe.

Não sofre com um ciclo difícil. Não sente orgulho de uma entrega que parecia impossível. Mas nós sentimos. E nisso reside a força do trabalho humano: ele não é só produção de valor; ele é produção de significado.

Esse significado também se expressa nos vínculos que criamos. Empresas não são sistemas; são comunidades. São teias de confiança, proteção, cuidado, humor, generosidade e coragem compartilhada.

O verdadeiro motor de equipes extraordinárias não é tecnologia; é vínculo. A segurança psicológica que libera a inovação, como tão bem mostra Amy Edmondson, nasce de relações humanas, não de algoritmos. É a coragem coletiva de tentar o que ninguém tentou, de discordar com respeito, de experimentar sem medo e de sustentar as tensões criativas que fazem o novo emergir.

E há ainda uma dimensão espiritual — não religiosa, mas existencial — que só nós possuímos: o desejo de contribuir para algo maior do que nós mesmos. Trabalhamos para sobreviver, mas nos dedicamos para significar.

Adam Grant afirma que o desempenho humano cresce exponencialmente quando sentimos que nosso trabalho ajuda alguém de verdade. Propósito não é um atributo técnico; é um atributo humano. Uma máquina não se pergunta se está contribuindo para o mundo, mas nós sim. E essa pergunta nos move mais do que qualquer KPI.

Diferencial existencial

É por isso que, no Brasil, pesquisadores como José Pastore e estudiosos do futuro do trabalho já apontam que as competências que sobreviverão à automação são as relacionais, afetivas, interpretativas e moralmente complexas.

E no exterior, estudos de Harvard, Stanford, MIT e McKinsey convergem para o mesmo diagnóstico: o diferencial humano nos próximos anos não será técnico, será existencial.

Continuará sendo valioso tudo aquilo que exige sensibilidade, empatia, visão sistêmica, pensamento crítico, comunicação inspiradora, colaboração profunda, capacidade de lidar com ambiguidade, maturidade emocional e discernimento ético.

O Post-it, da 3M, que sempre cito como exemplo, não nasceu de um plano corporativo, mas de um incômodo pessoal de Art Fry, um cantor de coral da sua igreja aos domingos que precisava marcar seu hinário sem danificá-lo.

Não houve cálculo de ROI, mas houve inquietação, significado e curiosidade. Foi porque havia um propósito íntimo que ele insistiu, prototipou e deu ao mundo um produto icônico. E é sempre assim: grandes inovações não nascem do previsível, mas do profundamente humano.

Por isso, quanto mais IA houver, mais humanidade será necessária. A tecnologia não diminui a importância do humano; ela revela sua essência.

No futuro, o trabalho mais valioso será aquele que exige imaginação, sensibilidade, coragem, vínculo, julgamento ético, criatividade não linear, narrativas que elevam e causas que valem a pena.

As máquinas farão quase tudo, mas aquilo que faz a vida valer a pena continuará sendo nosso. Humano, demasiadamente humano. E é justamente isso que nos tornará insubstituíveis.

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