Geyze Diniz, cofundadora do ‘Pacto Contra a Fome’: "As empresas precisam entender que a fome afeta diretamente sua força de trabalho” (Geyze Diniz/Divulgação)
Repórter
Publicado em 16 de agosto de 2025 às 09h19.
Última atualização em 16 de agosto de 2025 às 09h34.
“Como somos um país produtor de alimentos, mas ainda assim convivemos com a fome?”. Essa é a pergunta que confrontou a economista Geyze Diniz durante a pandemia.
A crise sanitária da Covid-19 deu luz a grandes problemas sociais no Brasil, como a fome, que afeta até hoje milhões de brasileiros.
Com formação e especialização em economia, e com passagem em cargos de liderança por empresas como o Grupo Pão de Açúcar, Museu de Arte de São Paulo (MASP) e Península Participações, Geyze Diniz decidiu usar o seu conhecimento em gestão para fundar, em 2023, o ‘Pacto Contra a Fome’, iniciativa que atua no combate à insegurança alimentar e na redução estrutural do desperdício de alimentos.
“Sempre soube da existência da fome no Brasil e no mundo, mas foi durante a pandemia que me sensibilizei e decidi agir. Minha primeira preocupação foi com as crianças que tinham na merenda escolar sua principal refeição do dia. Com as escolas fechadas, a fome se tornaria uma realidade ainda mais dura para muitas famílias”, conta Diniz.
A primeira pessoa a apoiá-la com o movimento na época foi o marido e empresário Abílio Diniz.
“Ele foi um dos meus grandes incentivadores. Em certo momento ele me disse: ‘Você passou a pandemia inteira estudando e trabalhando nessa questão da fome. Seus olhos brilham, é um propósito seu. A gente precisa fazer alguma coisa pelo Brasil, e esse movimento é algo que você pode fazer e tem o meu total apoio’”.
À EXAME, a economista e empresária Deyze Diniz comenta os principais resultados da associação, os aprendizados adquiridos com o marido Abilio Diniz e como a sua carreira se transformou para a área social.
Durante muitos anos, atuei no mundo corporativo, onde aprendi profundamente sobre gestão, estratégia e resultados. Mas, à medida que minha trajetória avançava, ficava cada vez mais claro que vivemos em um país marcado por profundas desigualdades — e que o conhecimento e os recursos que agregavam à minha trajetória poderiam e deveriam ser usados também para transformar realidades.
Chegou um momento em que percebi que é muito mais valioso unir competência empresarial e propósito, gerando resultados e, ao mesmo tempo, impacto real. Foi assim que decidi direcionar minha energia e experiência para a área social, com o mesmo profissionalismo e rigor que sempre me guiaram, mas agora movida por algo que considero essencial: contribuir para que todos tenham acesso a algo básico e inegociável, que é a alimentação.
Mais do que isso, quero ser exemplo para meus filhos e outros profissionais mostrando que é possível — e necessário — conciliar sucesso financeiro e transformação social.
A fome cobra um preço altíssimo do país. Ela impacta diretamente a saúde pública. A má alimentação leva a doenças crônicas como obesidade e diabetes, que sobrecarregam o sistema de saúde.
Na educação, os prejuízos são imensos: uma criança mal alimentada não consegue aprender, se concentrar ou se desenvolver plenamente, inclusive fisicamente.
A fome também alimenta ciclos de violência: há crianças e adultos que se submetem a prostituição por um prato de comida.
Nas empresas, ela compromete a produtividade e o desempenho. Como empresária, sei que precisamos encarar isso de frente. Como eu disse: fome também é uma questão econômica.
A maior dificuldade é romper com a lógica emergencial, onde se pensa que a distribuição de cestas básicas ou transferência de renda são as únicas soluções. A fome exige uma abordagem de longo prazo, com políticas públicas estruturantes que garantam a segurança alimentar e nutricional com dignidade.
Além disso, ainda precisamos conscientizar o setor privado sobre o impacto que a fome tem, não só nas comunidades, mas também nas empresas. Afinal, mais de 64 milhões de brasileiros estão em situação de insegurança alimentar, e isso também afeta a força de trabalho e o desempenho das empresas.
Enfrentamos também um cenário de fragmentação. Muitas pessoas, organizações e até governos querem ajudar, mas atuam de forma desarticulada, muitas vezes duplicando esforços ou atuando apenas de forma emergencial. O que precisamos é de ação coordenada, políticas públicas de longo prazo e um modelo de governança que una esforços. Temos que ter políticas de Estado e não de governos.
Nós agimos de forma coordenada entre governo, setor privado e sociedade civil. Além de realizar ações emergenciais, trabalhamos no advocacy, pautando políticas públicas, e usamos dados e pesquisas para embasar nossas decisões. Temos como objetivo envolver diferentes atores na construção de soluções concretas e duradouras para o combate à fome.
Sair do Mapa da Fome da FAO é uma conquista, sim, mas está longe de ser o fim do trabalho. Segundo os dados da ONU, ainda temos 2,5% da população em situação de subalimentação, além de outros 28,5 milhões de brasileiros que convivem com a insegurança alimentar severa ou moderada. É muita gente. Não podemos nos acostumar a ver um país com essa dicotomia da abundância e escassez. Nosso trabalho está apenas começando.
A próxima etapa é garantir que esse número continue caindo, implementando programas estruturantes que efetivamente combinem políticas públicas, inovação e articulação entre os diferentes setores.
A meta é que até 2030 nenhum brasileiro passe fome e que, até 2040, todos tenham acesso à alimentação adequada. São metas ousadas, mas acredito que só com o engajamento coletivo de todos os setores da sociedade conseguiremos alcançá-las. A luta contra a fome no Brasil não é apenas uma questão de assistência, mas um compromisso de todos.
Abílio sempre foi uma grande inspiração para mim. Ele me ensinou que liderança não é só sobre tomar decisões, mas sobre assumir responsabilidades. Durante a pandemia, ele foi um dos meus maiores incentivadores. Ele me disse: 'Você tem um propósito, e eu te apoio nisso'. Suas palavras e seu apoio foram fundamentais para que eu tomasse essa decisão de me dedicar a essa causa.
O Abilio sempre foi uma inspiração para mim, pela sua visão de futuro, pela força de trabalho, por sua disciplina e, principalmente, pela capacidade de mobilizar pessoas em torno de grandes causas. Ele me ensinou que liderança é, antes de tudo, responsabilidade.
O legado dele está presente em muito do que faço, especialmente no Pacto Contra a Fome, onde aplico valores que ele sempre defendeu: disciplina, consistência, coragem de enfrentar problemas complexos e, acima de tudo, compromisso com o Brasil. Esse senso de missão que ele carregava é algo que levo comigo todos os dias.
O setor privado tem uma responsabilidade compartilhada. Muitas empresas ainda enxergam a fome como uma questão social do governo, quando, na verdade, ela deve ser encarada como um problema econômico. Investir em soluções que garantam segurança alimentar é essencial para a sustentabilidade do país. As empresas têm o poder de articular e influenciar, e devem se engajar mais ativamente na luta contra a fome.
Estamos muito orgulhosos do impacto que tivemos em 2024. Expandimos nossos projetos para oito estados, conseguimos parcerias com o governo em diversos projetos e a nossa campanha de conscientização sobre desperdício de alimentos teve mais de 250 milhões de visualizações. Além disso, estamos incentivando empresas a adotarem práticas alinhadas com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, premiando boas iniciativas no combate à fome.
MAIS DADOS – quantas pessoas já foram impactadas? Quanto já arrecadaram de recursos? Quantas cestas já foram doadas?
Vejo um futuro promissor, se todos nós, setores da sociedade, continuarmos trabalhando juntos. Não podemos esperar mais, a fome não pode ser uma realidade aceitável no Brasil.
O direito à alimentação é garantido pela nossa Constituição, em seu artigo 6º, e deve ser assegurado com a mesma seriedade e urgência com que tratamos saúde, educação e segurança. A luta contra a fome é, acima de tudo, a defesa da dignidade humana.
Hoje, o Instituto Pacto Contra a Fome é presidido por Geyze Diniz, na liderança do Conselho de Administração, e conta com a direção executiva de Maria Siqueira (também cofundadora) e Juliana Plaster.
A sede fica em São Paulo e a equipe é formada por mais de 39 profissionais, apoiada por um conselho e sustentada pelo engajamento de um grupo de mantenedores, entre eles Helio Mattar, diretor presidente do Instituto Akatu, João Alberto, CEO da Suzano, Kiko Afonso, CEO da Ação da Cidadania, Laura Muller Machado, professora e coordenadora de Gestão Pública no Insper, Regina Esteves, CEO ComunistasBR, e Vânia Neves, diretora de tecnologia da Vale.
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