Mulheres berberes marroquinas coletando água potável em Erg Chebbi, no deserto do Saara, perto de Merzouga, Draa-Tafilalet, Errachidia, Marrocos (Arterra / Marica van der Meer/Universal Images/Getty Images)
Repórter
Publicado em 16 de junho de 2025 às 10h46.
Última atualização em 16 de junho de 2025 às 12h06.
Arfoud - Marrocos: Desde 2017, uma seca persistente em Marrocos levou a uma queda significativa nos recursos hídricos, impactando severamente tanto os lençóis freáticos quanto as barragens. “Infelizmente, essa situação resultou em uma redução generalizada dos níveis de água em todo o reino. Estima-se que mais de 70% das regiões do país enfrentam escassez de água”, afirma Asma Ben Moussa, engenheira e PhD em hidrogeofísica.
Além da escassez, muitos marroquinos — especialmente em regiões rurais e desérticas — ainda enfrentam dificuldades no acesso à água potável, que muitas vezes apresenta níveis elevados de minerais como ferro e sal, potencialmente prejudiciais à saúde.
Diante desse desafio, a engenharia Moussa intensificou os estudos hidrogeológicos e geofísicos para localizar novos recursos e atender à crescente demanda do país africano por água pura – e para avançar nesta causa, ela apostou no empreendedorismo social.
Para causar um impacto positivo de maior escala, Moussa entendeu que não bastava só estudar formas de acesso à água potável, mas chamar investimento para essa causa que impacta diretamente a saúde pública de sua população. Foi assim que aos 48 anos, em fevereiro de 2024, ela decidiu criar a 'Manara Water Consulting', uma empresa marroquina especializada em gestão sustentável da água.
“Não basta só estudar a crise hídrica, é preciso investir em soluções acessíveis, inovadoras e adaptadas às realidades locais”, afirma a fundadora que tem mais de 24 anos em experiência em recursos hídricos e é PHD em Sistemas de Informação Geográfica e Hidrogeofísica pela Universidade Ibn Tofail, em Marrocos.
A empresa fica localizada em Tamesna, uma cidade planejada próxima à capital Rabat, no norte do Marrocos, e Moussa conta com seis funcionários com mestrado e um doutorado para desenvolver soluções para esse grande desafio marroquino.
À frente da MW Consulting, a empresária marroquina quer levar soluções sustentáveis de acesso à água a todo o Marrocos até 2030 – e há planos que vão além das fronteiras.
“O próximo passo será replicar o modelo em países africanos vizinhos, como Tunísia e Mauritânia”, afirma.
Para viabilizar a expansão, Moussa busca apoio por meio de um modelo de financiamento híbrido (reunindo recursos públicos, privados e internacionais) e aposta em tecnologias que conectam o conhecimento local com ferramentas de ponta. Entre as soluções desenvolvidas por sua empresa, estão:
“Desenvolvemos soluções adaptáveis, que cabem no bolso dos governos locais e fazem diferença real na vida das pessoas”, conta Moussa.
Asma Ben Moussa, engenheira e empresária: “Queremos mostrar que é possível transformar comunidades sendo mulher, cientista e empreendedora em um setor estratégico como o da água” (Asma Ben Moussa /Divulgação)
Em 2022, aproximadamente 75% da população marroquina tinha acesso a serviços de água potável geridos com segurança, em conformidade com os padrões internacionais de qualidade, disponibilidade e acessibilidade, segundo a ONEE (Office National de l’Électricité et de l’Eau Potable) - agência estatal marroquina responsável por coordenar tanto o setor elétrico quanto o abastecimento de água potável no país.
“Isso implica que cerca de 25% da população (cerca de 10 milhões de pessoas) permaneceu sem esses serviços essenciais”, diz Moussa.
Quando comparada a região urbana com a rural, as disparidades aparecem: enquanto cerca de 90% da população urbana tinha acesso adequado à água potável, apenas 46,7% dos residentes rurais se beneficiavam de fontes de água melhoradas, e aproximadamente 62% tinham acesso a serviços de água potável geridos com segurança, segundo dados da OMS de 2022.
“Esses números destacam a necessidade urgente de fortalecer a resiliência dos sistemas de água existentes, expandir as conexões domiciliares individuais em áreas rurais e continuar os esforços de investimento para alcançar o acesso universal à água potável até 2030”, afirma Moussa.
Além de áreas rurais, há comunidades que vivem em áreas desérticas, onde o calor pode chegar aos 50 °C e a água vale ouro. A principal fonte de abastecimento vem de poços e lençóis freáticos profundos. Nos centros urbanos no sul de Marrocos, por exemplo, que vão de Errachidia a Merzouga, o abastecimento de água potável é garantido por uma adutora regional, alimentada por duas fontes principais: poços profundos no sul do Marrocos e pelas águas superficiais da barragem de Hassan Edakhil.
“A qualidade da água distribuída nesses locais é considerada boa e está em conformidade com os padrões marroquinos e internacionais de potabilidade”, afirma Moussa.
Ilustração do abastecimento de água que vai de Errachidia a Merzouga, regiões que fazem parte do sul do Marrocos.
O desafio maior está nos pontos de água no deserto, onde há a presença de um aquífero raso, com profundidade inferior a 5 metros. Essa água, apesar de não ser recomendada para o consumo direto, por ser rica em ferro e sais minerais, ela apresenta qualidade satisfatória para fins de higiene - mas a situação piora nas chamadas ksours (vilas fortificadas), locais geralmente de barro e pedra onde vivem diferentes povos, como os berberes.
“As comunidades que vivem em ksours ficam distantes da adutora e são abastecidos apenas por fontes públicas e, infelizmente, essas populações sofrem com a escassez da água potável”, diz Moussa.
Em áreas desérticas e rurais, a água subterrânea é rica em minerais como cálcio, magnésio, sódio e ferro, o que pode alterar o sabor e até comprometer a saúde pública.
“Em algumas áreas, onde os níveis de flúor podem ultrapassar os limites seguros, o acesso a esse tipo de água pode causar problemas ósseos e dentários, especialmente nas crianças”, afirma Cristiane Morandin, médica ginecologista e pós-graduada em Nutrologia pela Associação Brasileira de Nutrologia.
Já a alta concentração de sódio e cloretos na água, segundo a médica, pode contribuir para hipertensão, problemas renais e cardiovasculares. E os nitratos, que tem origem da agricultura intensiva, podem representar um risco grave para gestantes e bebês, podendo causar inclusive a ‘síndrome do bebê azul’, afirma Morandin.
“A ‘síndrome do bebê azul’ é uma condição em que o sangue não consegue transportar oxigênio adequadamente, fazendo com que a pele do bebê adquira uma coloração azulada, especialmente nos lábios, mãos e pés”, diz a médica.
Além disso, a presença de ferro, manganês e alumínio em concentrações elevadas na água pode afetar o paladar, causar manchas e, em longo prazo, até impactar o sistema neurológico, conta Morandin.
A ideia de Moussa empreender em causa social surgiu durante o Desert Women’s Summit, evento em que a empresária participou em Erfoud, Marrocos, em 2023. Foi neste ambiente que Moussa Moussa abraçou a missão de criar uma empresa que se tornasse um modelo replicável de liderança feminina em setores técnicos. E por isso, além de empresária, ela lidera algumas iniciativas sociais, como:
“Queremos mostrar que é possível transformar comunidades sendo mulher, cientista e empreendedora em um setor estratégico como o da água”, diz.
Para alcançar a meta de expandir seus serviços para o norte da África, a empresa busca parcerias com centros de pesquisa, empresas de engenharia e fundos de impacto social.
“Temos expertise técnica e uma visão clara de impacto. Com o apoio certo, podemos levar água potável, geração de renda e resiliência climática para milhões de pessoas no continente”, afirma.
Em 2024, Moussa cobriu as despesas do escritório de projetos, investindo aproximadamente 400.000,00 dirhams marroquinos (MAD) do seu próprio capital. Até o momento, a companhia não recebeu nenhum apoio governamental.
No entanto, assim que o escritório completar dois anos de atividade, a empresária conta que um banco se comprometeu a conceder um empréstimo de 1.200.000,00 dirhams marroquinos (MAD).
“Esse financiamento será destinado à aquisição de equipamentos geofísicos, especificamente para tomografia elétrica, bem como à compra de um veículo todo-terreno, usado em áreas desérticas”, afirma.
Graças à subcontratação de três projetos para um escritório de design, a empresa de Moussa já conseguiu gerar um faturamento de aproximadamente 650.000 dirhams marroquinos.
“Como parte dos projetos que subcontratamos, realizamos estudos hidrogeológicos aprofundados para a instalação de 100 furos de sondagem de reconhecimento na região de Draa Oued Noun (considerado o rio mais longo do Marrocos, que atravessa o deserto e é fundamental para a agricultura e a vida nas regiões áridas)”, diz a empresária.
Os resultados desses estudos trazem esperança. Segundo Moussa, mais de 80% dos furos de sondagem apresentaram resultados positivos, gerando vazões de água que variam de 1 a 20 litros por segundo.
“Esses furos de sondagem de reconhecimento serão posteriormente convertidos em poços de produção. Eles desempenharão um papel crucial no abastecimento de água a áreas no sul do Marrocos que anteriormente careciam de pontos de água suficientes e potáveis”, diz a empresária.
Apesar de ser um dos países com maior volume de água doce no mundo, o Brasil, assim como Marrocos, ainda convive com desigualdades alarmantes no acesso à água potável. Cerca de 32 milhões de brasileiros não têm acesso regular a água tratada, segundo dados do Instituto Trata Brasil. O problema é ainda mais grave em áreas rurais e nas regiões Norte e Nordeste. Em 2023, apenas 32 % dos domicílios rurais tinham rede de água, contra 93 % nas áreas urbanas, segundo dados do IBGE divulgados no final do ano passado.
"Temos desde estados onde a situação do saneamento está muito evoluída, como São Paulo, até estados no Norte e Nordeste que enfrentam um quadro de extrema precariedade", afirma Pedro Côrtes, professor do Instituto de Energia e Ambiente da USP sobre a situação de saneamento diversa no Brasil.
A lista das capitais brasileiras mostra essas disparidade, segundo dados da Fiocruz de 2024: só 9 capitais atingem 99% de cobertura de água potável; em cidades como Macapá, Porto Velho e Santarém, menos de 55 % da população têm acesso.
"O problema principal do Brasil para as regiões mais afastadas é, muitas vezes, a falta de acesso à água potável ou, quando há, a ausência de coleta e tratamento de esgoto", afirma Côrtes.
A Lei Geral do Saneamento, que propõe a privatização dos serviços, visa melhorar a qualidade e a eficiência dos serviços no Brasil, mas o professor da USP alerta que será necessário acompanhar de perto a execução dos investimentos. "A expectativa é de que com a Lei Geral de Saneamento haja uma melhora nos serviços, mas é importante ver se os investimentos serão realizados de forma eficiente e se eles realmente cumprirão as metas estabelecidas."
*A jornalista foi convidada para cobrir o evento ‘Desert Women Summit Brasil’, em Arfoud, Marrocos.