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Uma cultura de 120 anos: a história da Droga Raia, contada por quem viveu as quatros gerações

Antônio Pipponzi ajudou a transformar 7 farmácias em uma rede nacional. Em novo momento, ele deixa a presidência do Conselho e lança livro sobre liderança, sucessão, crises e expansão de um negócio que hoje somam mais de 3.200 lojas

Antônio Pipponzi, ex-CEO da Droga Raia: “A cultura de uma empresa não se impõe. Ela se vive.” (Antônio Pipponzi/Divulgação)

Antônio Pipponzi, ex-CEO da Droga Raia: “A cultura de uma empresa não se impõe. Ela se vive.” (Antônio Pipponzi/Divulgação)

Publicado em 23 de abril de 2025 às 18h19.

Última atualização em 23 de abril de 2025 às 18h24.

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Antônio Carlos Pipponzi encerra um dos ciclos mais marcantes da história da RD Saúde. Após quase cinco décadas à frente da companhia — sendo 35 anos como CEO da Droga Raia, fundada por seu avô, e 13 anos como presidente do Conselho após a fusão com a Drogasil — o executivo anuncia sua saída da presidência do Conselho.

O anúncio acontece na mesma semana em que Pipponzi lança o livro Transitando entre Gerações, obra que fala sobre os desafios e avanços de um negócio que agora chega na quarta geração.

“Não é um livro de mérito pessoal. É um legado familiar e empresarial, que começou com uma farmácia do meu avô no interior de São Paulo”, diz Pipponzi que lança o livro nesta quarta-feira, 23, em São Paulo.

Como neto de imigrantes italianos, Pipponzi lembra que herdou a veia empreendedora e sonhadora da família. "As grandes empresas crescem pelo sonho do fundador. No nosso caso, foi quase uma refundação."

Sob a liderança da terceira geração, a Droga Raia cresceu de 7 para 400 unidades, abriu capital na Bolsa e, em 2011, protagonizou a fusão com a Drogasil, que deu origem à gigante RD Saúde, com mais de 3.200 lojas espalhadas por todo o Brasil.

A relação de amor e ódio com a farmácia

O cheiro dos medicamentos ainda está vivo na memória de Pipponzi. Era esse o aroma que impregnava as férias de verão passadas sobre livros fiscais, em uma sobreloja da Praça João Mendes, onde ele escriturava manualmente o estoque das sete farmácias da família. “Eu tinha horror de farmácia”, conta. “Aquele cheiro me marcou. Eu só pensava: nunca mais quero trabalhar com isso.”

Formado em engenharia civil pela USP, Pipponzi escolheu a profissão por exclusão — nunca por paixão. Sem se encontrar na engenharia estrutural, aceitou, meio sem querer, o convite do pai para ajudar nos negócios da família. Foi assim que, com relutância inicial, acabou descobrindo o que realmente o movia: a gestão, o varejo, a comunicação com o cliente e a paixão pela expansão.

A partir dali,o que era incômodo virou missão. Ele foi o primeiro da terceira geração a se envolver com a expansão e a profissionalização da empresa, e trouxe com ele os irmãos Franco e Rosalia, que completaram o trio de liderança familiar. “Nunca tivemos discussões pessoais. As divergências eram sempre sobre o negócio — e mesmo assim, com muito respeito. A gente se entendia maravilhosamente bem.”

Primeira filial da Droga Raia em Araraquara em 1915 (Droga Raia/Divulgação)

Momentos marcantes – em família

Um bom líder costuma abrir caminhos, mas o caminho mais difícil que Pipponzi teve que abrir foi para a irmã. Quando insistiu para que a irmã Rosalia entrasse nos negócios, enfrentou de frente o conservadorismo do pai, que naquela época acreditava que “lugar de mulher era em casa”.

“Fiz uma verdadeira cruzada para que minha irmã viesse”, conta. A aposta deu certo: Rosalia se tornou uma das grandes parceiras na construção da empresa, afirma Pipponzi.

Outro capítulo simbólico dessa trajetória familiar foi escrito com um caminhão. Ainda no início da expansão, quando a rede contava com apenas sete farmácias, a empresa adquiriu seu primeiro veículo próprio. Ou quase isso. “A gente nem tinha certeza se o caminhão era nosso”, brinca. “Mas, quando ele chegou, fomos passear com ele. Era como se fosse um troféu, um símbolo de que a empresa estava pronta para ir mais longe.”

A liderança conquistada pelo exemplo

Quando entrou na empresa da família, em 1977, Pipponzi não assumiu um cargo de chefia – mas sim o chão da loja. Visitava farmácias, implementava processos, treinava equipes e fazia questão de estar presente em cada detalhe da operação. “Eu fazia de tudo”, conta.

Nos anos 80, o executivo promoveu uma revolução silenciosa na Raia: com um computador Cobra de 1 MB, informatizou o controle de estoques, gerando liquidez, melhorando o giro e abrindo caminho para o crescimento. Logo em seguida, liderou a automação dos pontos de venda — um feito inédito no varejo farmacêutico brasileiro à época.

“Antes disso, as notas eram feitas à mão e o caixa não tinha controle dos produtos que mais saíam”, afirma.

A cultura de 120 anos

Nos anos 1990, em meio à modernização do varejo, Antônio Carlos Pipponzi fez um movimento contraintuitivo: olhou para o passado. Percebeu que o verdadeiro diferencial da Droga Raia não era mais a tecnologia — mas a cultura de atendimento herdada do avô, que colocava o cliente no centro de tudo.

Inspirado pelo trabalho do Sr. Erculano, gerente da unidade de Araraquara (primeira farmácia da rede Droga Raia) e verdadeiro discípulo do fundador, ele decidiu resgatar essa essência e liderou uma transformação profunda: substituiu os balconistas comissionados por jovens de primeiro emprego e desenhou trilhas de desenvolvimento claras para quem quisesse crescer dentro da empresa.

“Nosso atendimento é o que mais nos elogiam. E isso vem da cultura”, afirma.

Para Pipponzi, não adiantava apenas treinar quem já estava lá. Era preciso romper com antigas práticas enraizadas. “Eles estavam presos a uma cultura que impedia a transformação necessária. Naquele momento, não era sobre capacitar — era sobre reconstruir. E isso exigia começar do zero com um novo time”, diz. “Afinal, cultura não se impõe. Cultura se vive.”

Primeira loja da Droga Raia em Araraquara, interior de São Paulo (Droga Raia/Divulgação)

Da crise à abertura de capital

O ano era 2007 e a Droga Raia se preparava para um dos movimentos mais ousados de sua história: abrir capital na Bolsa. Mas a crise do subprime, que abalou mercados globais e secou o apetite dos investidores, colocou os planos em pausa. A companhia, então fortemente endividada, precisou repensar sua rota.

Foi nesse contexto que dois sócios estratégicos entraram em cena: o family office da Natura e o Gávea Investimentos, comandado por Armínio Fraga. Além de capital, trouxeram uma nova mentalidade para dentro da empresa. “Aprendi com eles a olhar o negócio como projeto financeiro, menos apaixonado e mais racional”, diz Pipponzi.

A mudança de mentalidade deu frutos. Três anos depois, em 2010, a empresa finalmente realizou seu IPO — e com um sucesso que superou todas as expectativas. “Tivemos dez vezes mais demanda do que papéis ofertados. Vendemos pelo topo da faixa. Saímos de centenas de milhões em dívida para centenas em caixa. Dei liquidez para meus irmãos e abrimos caminho para crescer com mais solidez pelo Brasil.”

O marco financeiro abriu portas para a consolidação nacional da marca — e preparou o terreno para a fusão com a Drogasil, um ano depois.

Os avanços — e as lições — da quarta geração

Mesmo com quase meio século de atuação à frente da empresa, Antônio Carlos Pipponzi não se acomoda na posição de quem “já viu de tudo”. Pelo contrário: ele reconhece que uma das maiores virtudes de um líder em uma organização centenária é saber continuar aprendendo — inclusive com os mais jovens.
“Já tinha aprendido muito com a segunda e a terceira gerações. Agora, aprendo com a quarta. É preciso ter humildade para não bater o pé achando que sabe tudo”, afirma.

Essa postura, segundo ele, é o que garante a chamada ambidestria organizacional: a habilidade de manter vivas as raízes e os valores que sustentaram o crescimento da empresa, ao mesmo tempo em que se abre espaço para o novo — para escutar, testar e mudar.
“Tive uma humildade muito grande para aprender. Não dá para ficar no ‘eu sei, eu sei, eu sei’. Aprendemos com os fundos, aprendemos com os jovens.”

Uma das mudanças mais marcantes trazidas pela nova geração — e reforçada pela entrada dos investidores — foi o olhar financeiro mais apurado sobre cada decisão.
“Hoje, por exemplo, olhamos cada nova loja como um projeto de investimento. Colocamos na ponta do lápis todos os custos: luva, construção, aluguel, operação. E só avançamos se a taxa de retorno projetada fizer sentido.”

A profissionalização, para Pipponzi, foi essencial para transformar paixão em perenidade.

Um dos erros dessa história centenária

Nem toda inovação vem sem custo — e Pipponzi é o primeiro a reconhecer isso. Entre os muitos acertos ao longo de uma trajetória de mais de um século da empresa, ele também carrega a lucidez de admitir um equívoco estratégico: o desequilíbrio entre modernização e identidade.

“Fomos rápido demais para o outro lado. Escutamos demais a nova geração e, no entusiasmo de renovar, esquecemos um pouco da nossa história, da nossa cultura. Foi um erro”, diz, sem rodeios.

O deslize, segundo ele, aconteceu justamente em um momento de virada: quando a Raia começou a receber aportes de fundos de investimento e a adotar práticas cada vez mais sofisticadas de gestão corporativa. A profissionalização era necessária — mas, no processo, parte do DNA da empresa quase se perdeu.

“A tentativa de modernizar foi legítima e inevitável, mas por um período, nos afastou dos valores que sempre nos diferenciaram. E cultura, quando se afasta da essência, cobra seu preço.”

Preparando a nova geração para o futuro do negócio

Dar continuidade a um legado centenário exige mais do que passar a chave da empresa de uma geração para outra. E Pipponzi já sabia disso, mesmo sem ter tido um treinamento.

Quando decidiu preparar a quarta geração da família para assumir papéis de liderança na Raia Drogasil, estruturou um plano rigoroso, quase como um MBA personalizado para herdeiros.

“Não bastava ter o sobrenome. Eles precisavam provar que estavam preparados — e, mais importante, que queriam aquilo”, afirma.

A trilha de desenvolvimento criada por Pipponzi incluía uma série de etapas obrigatórias, que funcionavam como um verdadeiro filtro de vocação. O processo levava, em média, de 7 a 8 anos por candidato:

  • 1. Formação de excelência: Início com uma graduação em uma universidade de primeira linha, de preferência com base sólida em negócios, engenharia ou áreas estratégicas para o varejo.
  • 2. Experiência externa obrigatória: Ao menos três anos de trabalho em grandes consultorias ou empresas de mercado, sem qualquer vínculo com a Raia Drogasil, para ganhar maturidade profissional e visão externa.
  • 3. Estágio interno supervisionado: Após o ciclo externo, os candidatos podiam fazer um ano de estágio dentro da empresa, em áreas operacionais e estratégicas, para testar sua afinidade real com o negócio.
  • 4. Internacionalização: Para quem seguisse adiante, o próximo passo era um MBA fora do Brasil, seguido de uma experiência profissional internacional, para trazer novas perspectivas e contribuir com a expansão global da empresa.

Originalmente, a ideia era incluir um membro por núcleo familiar. Mas o entusiasmo — e a qualidade técnica — dos jovens acabou trazendo até seis integrantes da quarta geração ao mesmo tempo para dentro da empresa. “Nem todos permaneceram, nem todos tinham vocação para o ramo, mas todos deixaram alguma contribuição”, conta Pipponzi. “Não é simples abrir espaço para os mais jovens sem ferir a cultura, sem perder talentos. Mas quando há propósito e diálogo, o sonho pode ser compartilhado — e continuar crescendo.”

A fusão com a Drogasil e os novos desafios

A fusão que deu origem à RD Saúde nasceu de uma provocação dos fundos de investimento. A complementariedade geográfica entre as operações, a diferença geracional entre os executivos e a baixa liquidez das ações na Bolsa indicavam que unir forças era o caminho mais estratégico — ainda que emocionalmente difícil.

“Foi duro abrir mão da posição de CEO, especialmente num momento em que eu me sentia no auge da carreira. Mas era o melhor para todos”, conta Pipponzi.

Ele assumiu a presidência do conselho em 2011 e concentrou sua energia na expansão — uma de suas grandes paixões. “Aprovar pessoalmente mais de 90% das 400 lojas foi meu jeito de continuar presente. Hoje, a RD abre uma por dia. Já conheço mais de 600 cidades brasileiras.”

Com a fusão, vieram também os desafios culturais. “Conselho não é só um órgão de compliance. Ele deve ser o guardião da cultura, da estratégia e da perenidade”, afirma. Com esse olhar, estruturou comitês, promoveu debates sobre o futuro da companhia e ajustou a cultura organizacional à nova realidade digital — sem abrir mão do propósito. “Nosso foco continua o mesmo: cuidar de perto das pessoas em todos os momentos da vida.”

Pandemia, propósito e legado

Durante a pandemia, a RD mostrou agilidade, diz Pipponzi. Reforçou o caixa, antecipou a implementação do teleatendimento em parceria com o Hospital Albert Einstein e destinou R$ 25 milhões em doações a 50 hospitais, com curadoria cuidadosa e engajamento direto das equipes. “Nossos funcionários foram guerreiros.”

Nesse período, o Instituto MOL — criado por seu filho Rodrigo Pipponzi — também ganhou protagonismo. Com foco em governança e impacto, a iniciativa passou a apoiar a estruturação do terceiro setor no Brasil, oferecendo mais do que recursos financeiros: tempo, experiência e conhecimento.

Hoje, Pipponzi divide seu tempo em três partes: um terço dedicado ao conselho, um terço às mentorias e um terço às viagens — que ele considera uma de suas maiores fontes de aprendizado. “Impactar vidas é uma realização que só se compreende plenamente depois dos 60. Meu desejo é que, em 10 anos, meu repertório seja ainda maior do que está neste livro.”

Um conselho para quem lidera empresas familiares

Ao ser questionado sobre qual conselho daria a futuros líderes de empresas familiares, Pipponzi responde com a autoridade de quem viveu quatro gerações da mesma companhia — e atravessou fusões, sucessões e reestruturações sem perder o fio condutor do legado.

“O maior desafio não é financeiro, nem operacional. É manter o sonho coletivo vivo”, diz.

Quando os interesses dos herdeiros se dividem — entre crescer, buscar liquidez ou apenas preservar patrimônio — é preciso uma liderança clara, firme, mas conciliadora. “Tem que haver alguém que mantenha o grupo unido. Sem isso, não há legado, não há cultura, não há continuidade.”

Sobre a RD Saúde

​A RD Saúde, holding que reúne as marcas Droga Raia e Drogasil, lidera o mercado brasileiro de varejo farmacêutico, com uma participação de mercado de aproximadamente 17% e mais de 3.000 lojas em operação em todos os estados do país. As principais concorrentes são Grupo DPSP (Drogarias Pacheco e Drogaria São Paulo) com mais de 1.500 lojas e Pague Menos com sede no Ceará com 1.600 lojas. A receita bruta da RD Saúde em 2024 foi de R$ 41,8 bilhões, crescimento de 15,1%, com 6,5% nas lojas maduras (13,9% no 4T24 com 5,6% nas maduras)

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