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Azeite, wasabi e baunilha: como o Brasil está redefinindo ingredientes globais na cozinha

A produção local permite que os chefs trabalhem com insumos frescos, explorando nuances que ampliam a complexidade dos pratos

Kaifu: uso do wasabi no restaurante (Kaifu/Divulgação)

Kaifu: uso do wasabi no restaurante (Kaifu/Divulgação)

Júlia Storch
Júlia Storch

Repórter de Casual

Publicado em 14 de outubro de 2025 às 15h39.

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Ingredientes de origem estrangeira ganham terroirs locais ao serem cultivados no território brasileiro, apresentado novos sabores na gastronomia nacional. Da baunilha, antes restrita a importações de Madagascar, ao azeite, com oliveiras plantadas em diferentes regiões, até chegar ao raríssimo wasabi, que começa a brotar em plantações especializadas no interior do estado de São Paulo. O Brasil revela sua vocação para ressignificar sabores globais.

Essa produção local permite que os chefs trabalhem com insumos frescos, explorando nuances que ampliam a complexidade dos pratos e aproximam a alta cozinha de uma identidade genuinamente brasileira. 

Azeite 

Colhida: primeira safra produziu mais de 1.500 litros de azeite (Royalty-free/Getty Images)

A azeitona nasceu no Mediterrâneo, cultivada desde os tempos mais antigos no Oriente Médio e logo adotada por gregos, egípcios e romanos. Além de consumido in natura, o fruto deu origem a um dos ingredientes mais preciosos da história: o azeite. Extraído por meio da prensagem das azeitonas — técnica já usada há mais de 3 mil anos —, ele foi inicialmente empregado em rituais e na medicina antes de se tornar um pilar da culinária. Até hoje, a azeitona e o azeite seguem como símbolos da dieta mediterrânea e da boa mesa.

Atualmente, o maior produtor de azeite do mundo é a Espanha, com mais de 1,3 milhão de toneladas do óleo produzidos entre 2024 e 2025. No Brasil, a primeira extração de azeite extravirgem ocorreu em 29 de fevereiro de 2008, que resultou em 40 litros de óleo. Desde então, o mercado só cresceu e hoje o país produz cerca de 3,5 mil toneladas de azeite por ano. Em 2024, o Brasil ficou em quinto lugar no EVOO World Ranking – classificação criada para promover os azeites extravirgens mais premiados no mundo –, onde os produtores conquistaram 328 prêmios em 22 concursos distintos. 

A marca mineira de azeites artesanais, Colhida, é um dos bons exemplos das empresas que vem crescendo nos últimos anos. A fazenda de 20 alqueires fica em Sapucaí-Mirim, na Serra da Mantiqueira, a 1.600 metros de altitude. Ali, os chefs Juan e Gabi Zan transformaram um olival abandonado em uma premiada produção que já conquistou reconhecimento internacional em concursos na Itália, Argentina e Turquia. 

Em apenas um ano, a primeira safra produziu mais de 1.500 litros de azeite, com blends como o Intenso Safra Especial e o Terroir. Hoje, além de ampliar o olival, o casal também produz mel e cogumelos, sempre com foco na agricultura regenerativa.

Arak  

O arak é uma das bebidas mais tradicionais do Oriente Médio, com raízes em países como Líbano, Síria, Jordânia, Palestina, Israel e Iraque. Conhecido pelo sabor marcante do anis e pela textura leitosa que adquire quando diluído em água e gelo, o destilado é produzido a partir da fermentação de uvas combinado com sementes de anis. Há séculos, a bebida está presente em encontros familiares, celebrações religiosas e mesas de refeições típicas, sendo apelidado por aqui de “cachaça árabe”.

O processo de produção é artesanal e exige técnicas precisas, após a fermentação das uvas, o líquido passa pela destilação junto ao anis, o que concentra seu aroma e sabor. Tradicionalmente servido puro, com pedras de gelo, ou diluído em água gelada, o arak é uma bebida intensa, aromática e voltada a paladares que apreciam a força dos destilados.

No Brasil, a produção de arak vem ganhando espaço graças a iniciativas de diferentes regiões.No Rio Grande do Sul, a Best Spirits elabora o Arak Kalifah, que preserva o método tradicional de destilação e se tornou um dos nomes de referência no país. Em Minas Gerais, o Engenho D’Ouro também se destaca, levando sua produção para o mercado internacional. Já na Bahia, a Rio do Engenho lançou o Arak Ios 73, ampliando a diversidade do destilado nacional. Outra marca relevante é a Georges Aubert, que criou o Aperitivo Nacional Arak, aproximando o público brasileiro de uma bebida até então pouco conhecida por aqui.

Em São Paulo, o restaurante Sabah é um dos lugares onde o Arak tem destaque. Na casa dedicada às receitas familiares do Oriente Médio há tanto versões da bebida importada do Líbano, quanto nacionais. 

Bruno Sabbag, um dos sócios do restaurante, explica que prefere servir o arak puro com gelo. “Alguns clientes preferem adicionar água gelada, mas a forma mais tradicional é bebê-lo apenas com pedras de gelo. À medida que o gelo derrete, a bebida muda de cor e fica pronta para o consumo”, diz.

Bottarga

Nonna Rosa: risoto de alcachofra com bottarga nacional (Mário Rodrigues/Divulgação)

A bottarga é uma iguaria feita a partir das ovas salgadas e curadas da tainha, um processo artesanal que atravessou séculos e continentes até encontrar, no Brasil, um novo ponto de excelência. No Mediterrâneo, especialmente na Sardenha, na Sicília e na costa da Grécia, a bottarga é utilizada para valorizar massas, risotos e frutos do mar com seu sabor inconfundível, salgado e umami. No Japão, a versão conhecida como karasumi segue o mesmo princípio, sendo um ingrediente apreciado em ocasiões especiais.

No litoral de Santa Catarina, as águas frias e cristalinas favorecem a reprodução da tainha, cuja ova dourada se transforma em bottarga com sabor intenso e marcante. O processo artesanal envolve a retirada manual das ovas, a lavagem, a salga e a cura ao sol e ao vento, resultando em um produto de textura firme e sabor elegante, pronto para elevar qualquer prato. 

“A bottarga mediterrânea é um clássico, mas a brasileira vem surpreendendo. Temos recebido produtos de altíssima qualidade, com sabor mais delicado e frescor impressionante. É difícil comparar diretamente, mas nossa bottarga não fica atrás de nenhuma", diz Christian Soliman, chef do restaurante Nonna Rosa.

Baunilha 

Lido: panna cotta (Divulgação/Divulgação)

A baunilha é cultivada em diferentes regiões do país, com destaque para o Espírito Santo, Bahia, Amazônia, Goiás e o Distrito Federal. O Brasil possui mais de 37 espécies do gênero Vanilla, embora nem todas sejam aromáticas, o que coloca o país como um polo de grande potencial produtivo. Nos estados do Espírito Santo e da Bahia, o cultivo vem se expandindo e conquistando cada vez mais produtores. Em Goiás, a chamada Baunilha do Cerrado (Vanilla edwalli), encontrada na Serra Dourada, possui relevância histórica e cultural. No Distrito Federal e em outras áreas do Cerrado, a produção cresce, formando um polo em desenvolvimento segundo a Embrapa. Já na Amazônia, a fava-tonka, conhecida como cumaru, se destaca como variedade nativa com uso aromático similar ao da baunilha.

Embora o cultivo ainda seja relativamente recente, ele apresenta forte potencial econômico para a gastronomia e a indústria, beneficiando desde pequenos produtores até grandes empreendimentos. As favas brasileiras oferecem uma diversidade de perfis aromáticos. A Vanilla bahiana, típica da Mata Atlântica, traz notas de cacau, especiarias e madeira, enquanto a Vanilla pompona, encontrada no Cerrado, é mais oleosa, com aromas densos, lembrando tabaco e caramelo. Essa variedade amplia significativamente as possibilidades de expressão criativa dos chefs.

"A baunilha é um aroma circular, fundamental na confeitaria, mas não só aí. O mais importante, quando se avalia uma fava de baunilha, é observar o aspecto, a intensidade aromática e, sobretudo, a umidade. Uma baunilha ressecada perde rapidamente grande parte dos seus aromas característicos. O panorama da baunilha brasileira é muito interessante. Já existem produtores na Bahia, no Cerrado e também no Rio de Janeiro que oferecem favas de alta qualidade. São perfis que enriquecem muito o repertório de um chef", diz o chef Roberto Rebaudengo, do restaurante LIDO – Amici di Amici.

Para o chef, a baunilha se expressa melhor em preparações delicadas e rápidas, como cremes e sobremesas frias, sendo a panna cotta o exemplo ideal para revelar toda sua riqueza aromática. “Estamos planejando fazer uma panna cotta feita exclusivamente com baunilhas brasileiras. Será a forma de mostrar que o Brasil já produz uma baunilha capaz de competir em personalidade e identidade com qualquer importada, traduzindo no prato o sabor único da nossa biodiversidade”, diz Rebaudengo.

Wasabi

O wasabi é uma das plantas mais emblemáticas da culinária do Japão, conhecido pelo sabor pungente e pela complexidade aromática que se dissipa poucos minutos após o corte ou o ralo da raiz fresca. Tradicionalmente cultivado nas regiões de Shizuoka, Nagano e Iwate, o verdadeiro Wasabia japonica é um ingrediente raro e de difícil cultivo, o que explica seu alto valor e o uso frequente de substitutos à base de raiz-forte e corantes em pó ou pasta.

No Brasil, o cultivo desse ingrediente delicado se tornou realidade graças ao trabalho pioneiro do agrônomo Vinícius Shizuo Abuno, fundador da Minato Wasabi, em Pilar do Sul, interior de São Paulo. A empresa é a única produtora em escala comercial da América Latina e cultiva o verdadeiro Wasabia japonica em estufas com temperatura, luminosidade e umidade cuidadosamente controladas. O resultado é um produto de frescor excepcional, com aroma verde e picância limpa, semelhante ao encontrado nos melhores restaurantes japoneses do mundo.

A produção ainda é pequena, cerca de sete quilos por mês, mas já abastece casas de alta gastronomia e demonstra o potencial brasileiro para desenvolver um ingrediente antes restrito às importações. Com planos de ampliação para sessenta quilos mensais, o projeto representa um avanço importante para aproximar a tradição japonesa da produção local.

O quilo da raiz fresca pode chegar a custar até oito mil reais, reflexo da dificuldade de cultivo e da raridade do produto.

“Já utilizamos o wasabi produzido no Brasil, cultivado no sul do Estado. Por ser um produto muito delicado e sazonal, não conseguimos manter a oferta contínua no restaurante, então optamos pelo produto desidratado importado", diz Dimode Kim,  chef do Kaifu Asian Cuisine.

Em relação às alternativas disponíveis, o chef explica que, diante do volume de consumo em restaurantes, a versão em pó é a mais prática para manter padrão de qualidade constante. “Em casa, para uma refeição rápida, a pasta pronta cumpre bem o papel. Mas, considerando qualidade, sabor e saúde, o pó é a melhor escolha, porque permite controlar o sal e evitar conservantes e outros ingredientes industrializados.”

Lúpulo

Lúpulo nacional: em 2017 surgiram as primeiras plantações em escala comercial (Divulgação/Divulgação)

Ingrediente essencial na produção de cervejas, o lúpulo é responsável por equilibrar o dulçor do malte com notas de amargor e aromas que vão do herbal ao frutado. Seu uso remonta ao século VIII, quando monges europeus começaram a empregar a planta por suas propriedades medicinais e conservantes. No século XI, a monja e estudiosa Hildegard von Bingen já descrevia suas virtudes aromáticas, e em 1516 a Lei da Pureza da Cerveja da Baviera consolidou o lúpulo como elemento indispensável à receita. Desde então, seu cultivo se espalhou da Alemanha e Inglaterra para os Estados Unidos e, mais recentemente, para novas regiões do mundo, incluindo o Brasil.

Por aqui, o cultivo do lúpulo começou a ganhar força por volta de 2017, quando surgiram as primeiras plantações em escala comercial. A cultura adaptou-se bem a regiões de clima ameno, e hoje está presente em pelo menos dezesseis estados. Santa Catarina, São Paulo e Rio Grande do Sul lideram a produção, seguidos por Minas Gerais, Rio de Janeiro e Paraná.

De acordo com a Associação Brasileira de Produtores de Lúpulo (Aprolúpulo), o país produziu cerca de 88 toneladas em 2023, um crescimento de mais de 200% em relação ao ano anterior.

Esse avanço marca uma nova fase para a cervejaria artesanal brasileira. Com terroirs distintos, o lúpulo cultivado em solo nacional apresenta características sensoriais próprias, diferentes das encontradas nas variedades europeias e norte-americanas. Em vez de aromas predominantemente cítricos ou resinosos, o lúpulo brasileiro tende a expressar notas de frutas tropicais como manga, maracujá e pêssego, além de nuances herbais e frescas que remetem à grama cortada.

“O lúpulo brasileiro é mais verde, mais fresco, com aromas que lembram frutas tropicais. É diferente dos lúpulos europeus, que são mais florais e terrosos, e dos americanos, mais cítricos. O nosso tem uma identidade própria. Só é preciso usá-lo com moderação, porque o frescor intenso pode se sobressair demais na cerveja”, diz o mestre cervejeiro Rodrigo Louro, do Tank Brewpub.

Segundo Rodrigo, o uso do lúpulo nacional é especialmente interessante em estilos que valorizam o frescor, como as wet hop ales, feitas com flores recém-colhidas, utilizadas até 24 horas após a colheita. “Agora que temos produção local, conseguimos fazer esse tipo de cerveja com um caráter muito mais autêntico, já que o lúpulo é extremamente perecível e perde aroma rapidamente quando transportado por longas distâncias”, explica.

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