Vinhedo em Bordeaux: tradição na elaboração de vinhos. (Anton Petrus/Getty Images)
Sommelier
Publicado em 22 de março de 2025 às 07h44.
Bordeaux é sinônimo de tradição no mundo do vinho. Mas o que define a hierarquia entre seus produtores? A resposta está em uma lista criada há quase 170 anos: a Classificação de 1855. Encomendada por Napoleão III para a Exposição Universal de Paris, ela tinha um propósito simples: organizar os vinhos de acordo com sua reputação e preço da época. O que começou como um guia de referência se tornou um dos sistemas mais influentes do mercado, central em todo o mundo do vinho.
A Câmara de Comércio de Bordeaux delegou a missão ao sindicato dos corretores de vinho da região. A lógica era objetiva: ranquear os châteaux com base nos preços médios das últimas décadas. O critério era puramente comercial e matemático. Os vinhos mais valorizados foram divididos em cinco categorias, de "Premier Cru" a "Cinquième Cru". Apenas 61 propriedades da margem esquerda (Médoc e Graves) foram incluídas na classificação, com uma exceção: Château Haut-Brion, que fica em Pessac-Léognan.
Os mais prestigiados, os "Premiers Crus", foram Château Lafite, Château Latour, Château Margaux e Château Haut-Brion. No topo da lista dos Sauternes, Château d’Yquem teve um status superior: Premier Cru Supérieur. O Château Mouton Rothschild figurou como Second Cru na época, mas um século depois sua história daria uma guinada.
Apesar de sua origem comercial, a classificação de 1855 ainda dita preços e prestígio. Um vinho de Premier Cru pode custar milhares de euros, enquanto os de classes inferiores costumam ser mais acessíveis. A hierarquia não mudou, salvo uma exceção histórica: em 1973, após uma intensa campanha liderada pelo barão Philippe de Rothschild, o Château Mouton Rothschild foi promovido de Second Cru para Premier Cru.
A resistência a mudanças não impediu que Bordeaux continuasse a evoluir. A margem direita, por exemplo, nunca entrou na classificação de 1855, mas abriga alguns dos vinhos mais valorizados do mundo.
Se o critério fosse apenas qualidade, a lista de 1855 poderia ter sido diferente. E, se fosse atualizada, novos châteaux passariam a fazer parte da relação, e classificações poderiam ter sido alteradas. Pétrus, um dos rótulos mais caros e cobiçados do planeta, não aparece na classificação porque a lista foi feita apenas para os vinhos da margem esquerda. Situado em Pomerol, o Pétrus construiu sua reputação ao longo do século XX e hoje compete em preço e prestígio com qualquer Premier Cru.
Outro exemplo é Château Palmer, classificado como Troisième Cru em 1855. Embora esteja tecnicamente na terceira categoria, sua reputação e preços muitas vezes rivalizam com os vinhos da elite de Bordeaux. Sua consistência e qualidade ao longo dos anos fazem dele um dos grandes nomes de Margaux.
Já Vieux Château Certan, de Pomerol, e Cheval Blanc, de Saint-Émilion, são referências absolutas de suas regiões, e valorizados globalmente independentemente de participar da classificação histórica.
O impacto da classificação de 1855 é inegável, mas Bordeaux vai além dela. O sistema de Saint-Émilion, revisado periodicamente, e os "vinhos de garagem" surgidos na década de 1990 mostram que qualidade e inovação podem superar a tradição. Hoje, compradores e investidores ainda olham para a lista de 1855 como um selo de garantia, mas sabem que o real valor de um vinho vai muito além do que foi decidido com base em um ranking de preços há mais de um século.
Bordeaux continua a ser uma das regiões mais dinâmicas do mundo do vinho. O tempo mostrou que prestígio não é imutável e, como se diz no mercado financeiro, resultados conquistados no passado não são garantia de retornos futuros. As regras estabelecidas no passado ainda fazem sentido no presente? Ou a verdadeira hierarquia do vinho está sendo redefinida, a cada colheita, a cada safra, e a cada garrafa aberta?