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Farinha: um dos principais ingredientes para o posicionamento das marcas

Empresas apostam na origem e no processo para construir valor e diferencial

Farinha: as mais produzidas e consumidas são a de trigo, essencial nos processos de panificação e confeitaria devido às suas propriedades viscoelásticas (Bruno Geraldi/Divulgação)

Farinha: as mais produzidas e consumidas são a de trigo, essencial nos processos de panificação e confeitaria devido às suas propriedades viscoelásticas (Bruno Geraldi/Divulgação)

Carolina Gehlen
Carolina Gehlen

Head of Design

Publicado em 28 de junho de 2025 às 06h07.

Por séculos, moinhos giraram ao sabor do vento, moendo grãos e alimentando histórias. Dom Quixote, personagem do livro escrito pelo espanhol Miguel de Cervantes (1547–1616), os via como gigantes a serem vencidos. Sancho Pança, seu companheiro mais pé-no-chão, talvez os visse como promessa de pão quente saindo do forno.

É desse pó moído — carregado de cultura e simbolismo — que nasce a farinha. Muito além do trigo, ela tem múltiplas origens e funções na cozinha.

“Farinha é o produto obtido da moagem de matérias-primas vegetais, com ampla aplicação como base, espessante ou agente de volume em diferentes preparações culinárias. As farinhas podem ser derivadas de cereais, como arroz, trigo, milho e aveia; de tubérculos, como mandioca, araruta e batata; de leguminosas, como feijões e grão-de-bico; de oleaginosas, como amêndoas, nozes e castanhas; além de sementes, como a linhaça”, explica Mariana Thalacker, nutricionista e cozinheira, especialista em cozinha brasileira e gestão em negócios de alimentação.

Mariana Thalacker, nutricionista e cozinheira, especialista em cozinha brasileira e gestão em negócios de alimentação: "farinha é o produto obtido da moagem de matérias-primas vegetais, com ampla aplicação como base, espessante ou agente de volume em diferentes preparações culinárias" (Arquivo pessoal/Divulgação)

A seleção da farinha adequada é um fator determinante no desenvolvimento técnico das receitas, impactando diretamente textura, perfil sensorial, estrutura e propriedades funcionais do produto, completa Thalacker, e a forma como uma marca se apresenta e reforça seu posicionamento no mercado.

Nem toda farinha vem do mesmo saco

Pensando em Brasil, “as farinhas mais produzidas e consumidas são a de trigo, essencial nos processos de panificação e confeitaria devido às suas propriedades viscoelásticas; a de milho, amplamente empregada em receitas regionais, como cuscuz e broa de milho; e a de mandioca, cuja matéria-prima é cultivada em larga escala no país, sendo utilizada tradicionalmente em preparações como farofas, pirões e molhos, atuando também como espessante. A farinha de arroz, com expressiva produção na Região Sul, é uma alternativa adotada em dietas restritivas, por ser naturalmente isenta de glúten”, diz Thalacker.

A escolha pelo tipo de produto reforça a identidade e consolida a história do que é produzido; como é o caso da Osteria Taipa, na cozinha do restaurante são desenvolvidas massas sem glúten com farinha artesanal de pinhão. O processo 100% artesanal é conduzido em Lages, Santa Catarina, e dá origem a massas frescas, produtos para a mercearia e um menu degustação durante a Festa do Pinhão, que está em sua 35ª edição neste ano.

Desde 2022, os irmãos Branco, chefs na Taipa, pesquisam e desenvolvem a farinha, o processo inclui cozimento dos pinhões, descasque manual, desidratação lenta no forno, moagem e peneiramento. “É um trabalho completamente artesanal. Fazemos na cozinha o que normalmente seria um processo industrial”, explica Victor Branco.

Irmãos Branco, chefs da Osteria Taipa, localizada em Lages, Santa Catarina: na cozinha do restaurante são desenvolvidas massas sem glúten com farinha artesanal de pinhão (Divulgação/Divulgação)

A farinha fina resultante desse processo é utilizada na produção de massas frescas servidas na Osteria, e em massas curtas secas que serão vendidas na Merca Taipa, mercearia do restaurante. O resíduo mais grosso da peneira se transforma em um cuscuz artesanal.

Victor conta que desenvolveu as massas de pinhão para atender à demanda crescente por produtos sem glúten, e encontrou um resultado surpreendente: “Nunca encontrei no mercado uma massa sem glúten que realmente me agradasse. Quando testei a farinha de pinhão, fiquei surpreso com a textura. Ela é muito similar à massa tradicional feita com sêmola”, afirma o chef.

Além do aspecto gastronômico, os chefs já estão empenhados em utilizar o projeto para apoiar economicamente produtores locais, capacitando comunidades extrativistas para agregarem valor ao pinhão. Segundo ele, do pinhão com casca apenas cerca de 20% se tornam farinha, o que possibilita uma nova perspectiva de aproveitamento econômico para a região.

A peso de ouro

Pesquisas, testes e aprimoramento de técnicas fazem com que as marcas vejam na farinha uma forma de trazer mais valor a seus produtos. É o caso da Bráz, eleita a quarta melhor rede de pizzarias artesanais do mundo pelo guia 50 Top Pizza. A marca desenvolveu a farinha chamada de Grano Nostrum, em parceria com o italiano Raffaele Mostaccioli, especialista em panificação, junto com o time da marca.

“A farinha tem um papel decisivo para que sejam colocados os alicerces de uma massa cuja finalidade é enaltecer não só a qualidade dos demais ingredientes usados, para as várias coberturas das pizzas, como também proporcionar ao cliente uma experiência gustativa única, em que ele possa apreciar a harmonização de texturas, aromas, sabores que o possam surpreender”, afirma Mostaccioli.

O objetivo é surpreender e elevar a experiência do cliente no salão e nas entregas, ao chegar a uma massa que preservasse por mais tempo as características da pizza ao sair do forno, respeitando a tradição brasileira de consumo. “Na Itália, as pizzas são individuais, enquanto aqui no Brasil temos o hábito de compartilhar pizzas grandes. O Raffaele sempre diz que quem fica com o último pedaço sai em desvantagem, porque ele já está frio e com a textura comprometida. Por isso, ao desenvolver a nova massa, buscamos garantir a qualidade até a última fatia. A ideia é que se tenha uma experiência elevada do início ao fim”, afirma Camila Prado, diretora de experiência e operações da Bráz.

Bráz pizzaria: a marca desenvolveu a farinha chamada de Grano Nostrum, em parceria com o italiano Raffaele Mostaccioli, especialista em panificação, junto com o time da marca (Bruno Geraldi/Divulgação)

Produzida pela Mulino Caputo — fundado em Nápoles em 1924 e reconhecido por sua excelência na produção de farinhas, com respeito à pureza do trigo, ao tempo da moagem e à tradição italiana —, a 100% Grani Italiani é feita exclusivamente com grãos cultivados por pequenos agricultores da região da Campânia, no sul da Itália. Seu processo de moagem lenta preserva os nutrientes, respeita o tempo do trigo e garante uma massa com leveza, textura superior e excelente desempenho. O resultado é uma massa que mantém o padrão Bráz de fermentação longa e natural, com bordas altas e aeradas, entregando ainda mais leveza e complexidade de sabor em cada fatia.

Marca registrada

A visão de que farinha é parte da identidade da marca também é seguida pela padaria carioca The Slow Bakery. Desde 2018, o padeiro e sócio Rafa Brito Pereira trabalha com farinhas produzidas à base do trigo da Fazenda Vargem, em Vianópolis, Goiás, administrada por três irmãos que dão continuidade ao projeto iniciado pelo pai há mais de 50 anos.

O relacionamento entre a padaria e o produtor evoluiu com trocas constantes e a parceria com o moleiro português Paulino Horta, cuja família trabalha com moagem de trigo desde o século 18. O resultado foi a criação de farinhas moídas em moinhos de pedra austríacos instalados na própria fazenda, produzidas com processamento local e em pequena escala.

O padeiro e sócio Rafa Brito Pereira, da carioca The Slow bakery, trabalha com farinhas produzidas à base do trigo da Fazenda Vargem, em Vianópolis, Goiás (Divulgação/Divulgação)

Entre os produtos desenvolvidos está a Farinha Slow, moída lentamente para evitar aquecimento, com moagem fina e perfil sensorial marcante. Hoje, todos os pães da casa levam um pouco dessa farinha ou de sua versão integral, incluindo o pão Slow, feito 100% com farinha viva: um sourdough de casca fina e crocante, miolo elástico e sabor intenso.

Essa elasticidade vem de um aspecto central para o desempenho da farinha de trigo em panificação: o glúten — rede proteica formada das proteínas do trigo quando hidratadas e sovadas. Ele é o responsável por conferir elasticidade, estrutura e capacidade de retenção de gases, atributos fundamentais para o desenvolvimento de miolos aerados e massas estáveis, como nas pizzas e pães artesanais, afirma Thalacker.

Al dente

Na indústria, a marca italiana De Cecco — sinônimo de alta qualidade no setor de massas de sêmola e com 130 anos de tradição — também enxerga na farinha um diferencial estratégico. Utiliza exclusivamente trigo duro com o mais alto índice de glúten possível (acima de 70%), característica essencial para garantir elasticidade e melhor desempenho da massa. Com faturamento superior a 200 milhões de euros, um terço oriundo das exportações, o grupo mantém vivo o desejo de preservar, proteger e consolidar os princípios de seu fundador: uso de sêmola selecionada e fresca proveniente do próprio moinho, trefilação em bronze, secagem em baixa temperatura e rigoroso controle de qualidade.

Thalacker explica que em países como França, Alemanha e Itália, a classificação das farinhas considera teor de cinzas (resíduos minerais resultantes da queima da farinha, que indicam o grau de refinamento) e proteína, seguindo uma escala refinada. Cada tipo é formulado para aplicações específicas — desde confeitaria delicada até pães de longa fermentação.

Na Joya Boulangerie, localizada em São Paulo, a chef Isabela Honda trabalha com farinhas francesas da marca Bagatelle, pensada para aplicações específicas. Reconhecida por sua pureza, rastreabilidade e performance em panificação artesanal, cada tipo de farinha é escolhido conforme a finalidade e o perfil do pão: a Bagatelle T45 é tilizada na produção de pães macios e croissants, proporciona leveza, estrutura e delicadeza na textura; já a versão T150 é usada para os pães integrais, com maior aporte de fibras e sabor mais terroso.

As farinhas europeias específicas para panificação artesanal apresentam 12% a 14% de proteína. Sendo chamada de farinhas fortes, essa demanda crescente de farinhas com maior força panificável ainda é nichada e depende da importação do item especialmente de países como Argentina, Canadá e Itália, alguns pequenos produtores nas regiões Centro-Oeste e Sul do Brasil têm feito tentativas de produção do trigo duro, mas ainda pouco representativas no mercado nacional, complementa Thalacker.

No Brasil, a categorização oficial é definida pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e contempla três principais tipos: Tipo 1, Tipo 2 e Integral. Essa classificação é baseada em parâmetros como granulometria, teor de proteínas e teor de cinzas. A farinha de trigo apresenta variações significativas em sua classificação e desempenho conforme os critérios regulatórios adotados por cada país.

A farinha, por si só, não garante o resultado. O desempenho final depende de uma série de fatores: fermentação, tipo de fermento (natural ou não), abertura da massa, cobertura, cocção e serviço, afirma Raffaele Mostaccioli. “Como sempre, é o trabalho coletivo que faz a diferença — a dedicação, a competência e a paixão de todos os envolvidos nos vários estágios: do escritório à produção, do serviço à manutenção e, claro, dos fornecedores.”

Isabela Honda, chef da Joya Boulangerie, localizada em São Paulo: "o público está cada vez mais atento à origem dos ingredientes e ao processo de produção" (Juliana Primon/Divulgação)

Os clientes percebem essa diferença tanto na apresentação quanto ao degustar, e isso impacta, sim, na fidelização e no volume de vendas, afirma a chef Isabela Honda.  “As farinhas francesas que escolhemos, como a T45, T65 e T150 da Bagatelle, são fundamentais para o padrão de qualidade que entregamos na Joya. Elas influenciam diretamente a textura, o sabor e o desempenho da fermentação.”

Para ela, o público está cada vez mais atento à origem dos ingredientes e ao processo de produção. “Eles valorizam uma fermentação natural bem conduzida, percebem o aroma, a leveza, a textura da casca e, principalmente, o sabor. Muitos nos dizem que sentem aqui uma diferença na experiência. E isso, para mim, vem da qualidade da farinha e uma combinação de técnicas que influenciam na percepção dos consumidores”.

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