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A contradição de um clamor

Enquanto pede apoio do setor produtivo contra Trump, política interna do governo sufoca o empreendedor

Tarifas; guerra comercial (Nuthawut Somsuk/Getty Images)

Tarifas; guerra comercial (Nuthawut Somsuk/Getty Images)

Instituto Millenium
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Publicado em 14 de julho de 2025 às 19h41.

Por Yuri Quadros*

 

Pedir união nacional enquanto sufoca quem produz não é exatamente a mais sábia das estratégias. Mas foi o que o presidente Lula ensaiou ao convocar o empresariado nacional a se unir contra o tarifaço de Donald Trump — o mesmo empresariado que, internamente, já vem sendo exaurido a baldes pela política fiscal do próprio governo. O apelo, ainda que envolto na retórica da “União e Reconstrução”, soa como sineta em pasto seco: muito barulho, pouca coerência.

A crise teve origem além-mar: Trump, em plena reencarnação protecionista, decidiu aplicar tarifas de 50% sobre certos produtos brasileiros. Alegou, como justificativa, uma represália à “caça às bruxas” que o Supremo Tribunal Federal estaria conduzindo contra Jair Bolsonaro, e também a decisões que afetariam big techs americanas. Diante disso, Lula reagiu publicamente, inclusive em artigos publicados em jornais de oito países, criticando tarifas unilaterais. O presidente chegou a afirmar que o Brasil poderia usar a Lei de Reciprocidade Econômica para retaliar com a mesma alíquota de 50%. Além disso, clamou pela união dos empresários e do setor produtivo, pedindo pela superação das divergências em torno desse “inimigo” em comum.

Até aqui, nada muito fora do script. O problema está no subtexto: ao mesmo tempo em que convoca empresários a um esforço conjunto contra ameaças externas, Lula continua impondo um ambiente interno hostil ao próprio setor produtivo. O resultado é uma contradição ruidosa, quase irônica, entre o discurso de cooperação e a prática de oneração.

Os números não mentem. De 2022 até o fim de 2024, a carga tributária bruta do Governo Federal subiu 3,59%. E, sob a batuta do ministro Fernando Haddad — ou “Taxad”, como os memes têm lhe apelidado com certa precisão irônica — já foram ao menos 25 medidas de aumento na arrecadação desde janeiro de 2023. A lista impressiona: reoneração do PIS/Cofins sobre receitas financeiras e combustíveis, nova tributação sobre a exportação de petróleo, a famigerada “taxa das blusinhas”, aumento do IPI sobre armas, taxação de painéis solares e carros elétricos, revogação de isenções de IRPJ e CSLL sobre incentivos fiscais estaduais, novas regras para juros sobre capital próprio… A cada medida, o tapete sob os pés do empreendedor se torna mais instável.

Nem mesmo o IOF escapou: pouco tempo atrás, o governo tentou elevar a alíquota — tentativa rapidamente revertida pelo Congresso, mas que, mesmo assim, gerou arrecadação recorde de R$ 8 bilhões naquele mês de junho. O mais grave? Especialistas já haviam alertado: encareceria o crédito, atingiria os mais endividados e pressionaria os juros. Como costuma acontecer com medidas populistas de curto prazo, o remédio piora a febre.

No campo dos gastos, o panorama não é menos inquietante. Segundo projeção da Instituição Fiscal Independente do Senado, o governo pode fechar 2025 com déficit primário de 0,77% do PIB, o que implicaria um crescimento da dívida pública em cerca de 12 pontos percentuais em quatro anos. Para além dos números frios, o que se vê é um tensionamento contínuo do arcabouço fiscal, driblado por manobras que redirecionam fundos originalmente criados para abater a dívida — como o Fundo Social do Pré-Sal — em favor de programas como o Minha Casa Minha Vida e financiamentos do BNDES. Gasta-se mais. Muito mais. E fora das margens que a responsabilidade permitiria.

A incoerência, então, ganha contornos de escárnio. Como esperar que o empreendedor responda ao chamado de reconstrução nacional se cada gesto de iniciativa privada é recebido com mais encargos, mais entraves e mais desconfiança? Israel Kirzner, economista pouco lembrado fora de círculos liberais, escreveu que o empreendedor é aquele que “percebe o que ninguém viu, age antes de todos, arrisca com base no invisível”. Mas como empreender, se o próprio Estado faz da criatividade um alvo fiscal? Se cada oportunidade detectada se torna, no dia seguinte, uma nova alíquota?

É disso que se trata: o empreendedor, na visão de Kirzner, é aquele que intui lacunas e as converte em soluções, antes que outros percebam que havia ali um vazio. Mas num ambiente onde cada espaço aberto logo é fechado por decreto, a alertedness — essa atenção criativa ao real — se retrai. O que deveria ser estímulo vira punição. O que era para florescer definha.

Na prática, a mensagem do governo tem sido clara, ainda que não verbalizada: “ajudem, mas arquem sozinhos com o custo”. E isso, convenhamos, não é apelo à união, é imposição disfarçada de cooperação.

Se há um caminho possível, ele passa por devolver ao empreendedor não só a palavra, mas a liberdade para operar num ambiente menos punitivo. Só assim poderemos falar, com alguma honestidade, de reconstrução. Até lá, o clamor permanece — mas ecoa no vazio.

 

*Yuri Quadros é Diretor de Formação do Instituto de Formação de Líderes de Belo Horizonte e conselheiro da Rede Liberdade.

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