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Llosa em Porto Alegre

Quando a cidade foi palco de um encontro histórico entre literatura, liberdade e grandes nomes do pensamento liberal

O escritor peruano Mario Vargas Llosa.  (Oscar J.Barroso/Europa Press/Getty Images)

O escritor peruano Mario Vargas Llosa. (Oscar J.Barroso/Europa Press/Getty Images)

Instituto Millenium
Instituto Millenium

Instituto Millenium

Publicado em 15 de abril de 2025 às 10h15.

*Carlos Fernando Souto

Trinta anos atrás, mais precisamente no dia 28 de março de 1995, Mario Vargas Llosa, além de celebrar seus 59 anos de idade, subia ao palco do 8º Fórum da Liberdade, promovido pelo Instituto de Estudos Empresariais (IEE), para tratar — vejam só — do livre comércio: um mundo comercialmente aberto e livre, idealmente sem tantas tarifas ou complexidades para os negócios. Em vez de guerras, o livre comércio. Foi um momento marcante e inesquecível, com ampla cobertura da mídia nacional e internacional. Guardo com carinho muitos desses registros.

Em sua palestra, de maneira muito ilustrada, disciplinada e com enorme fidalguia, Llosa abordou a interdependência entre a liberdade política e a liberdade econômica, argumentando que não seria possível sustentar uma sociedade parcialmente livre por muito tempo. Destacou que a liberdade é um conceito virtuoso e abrangente, que engloba diversas dimensões que não podem ser separadas sem comprometer sua própria essência.

Na plateia, provavelmente um pouco contrariado pela amplitude do conceito, estava outro palestrante do evento: Zheng Hongye, chairman do comércio internacional da China. Incentivador da abertura econômica chinesa — que, como sabemos, veio a acontecer — não simpatizava com esse mesmo conceito aplicado à política.

Durante o evento, Llosa também expressou sua oposição aos monopólios estatais, alertando que a ideia de setores estratégicos controlados pelo Estado é frequentemente usada como pretexto por estatistas para manter o controle sobre a economia — com todos os efeitos nefastos daí decorrentes, como, suspeito, a corrupção.

Na plateia, Roberto Campos — também palestrante — certamente concordava com Llosa. E isso muitos anos antes dos escândalos envolvendo a Petrobras, a quem Campos chamava de Petrossauro, dado o atraso que a companhia, por sua incompetência assegurada pelo monopólio, impunha ao Brasil.

Na sua coluna Diário da Corte, de 6 de abril daquele ano, publicada no Estadão, Paulo Francis — que também participou como palestrante do Fórum — escreveu elogiosamente sobre o evento. Destaco dois breves trechos:

O primeiro, sobre o Fórum:

“Fiquei agradavelmente bestificado. Foi uma surpresa, um prazer, e a certeza de que vamos sair dessa roça mental dos reacionários fregueses do estatismo. (...) Foi um sucesso o Fórum.”

E sobre Llosa:

“É uma honra estar vivo e poder lê-lo, agora acrescida do prazer de conhecê-lo pessoalmente. Foram dias felizes em Porto Alegre.”

Passei três dias daquele início de outono ciceroneando Llosa por Porto Alegre. Foi algo mágico. Longas conversas sobre literatura, filosofia, economia, liberalismo e o Brasil. Ele, naturalmente, mais falava, e eu, atentamente, ouvia. Lembro que me perguntava até sobre a qualidade da tradução de seus livros para o português. Eu respondia com muita cautela e pouca desenvoltura, medindo as palavras — e aprendia imensamente.

A memória, com o tempo, vai se moldando, sei bem, especialmente quando se trata de algo que se passou há 30 anos. Ainda não tenho a idade que Llosa tinha naqueles dias, mas o carinho e a alegria com que guardo aqueles momentos seguem intocados.

Organizamos um jantar memorável para celebrar seu aniversário de 59 anos na residência de um importante e gentil empresário gaúcho, apoiador do IEE. Lá estavam, felicitando Llosa, além da diretoria e associados do IEE: Francis, Campos, um muito sorridente Donald Stewart Jr. — fundador do Instituto Liberal do Rio de Janeiro — Israel Kirzner — professor da NYU e expoente da economia austríaca, ambos também palestrantes do evento — Eduardo Giannetti da Fonseca, que fez a mediação do Fórum da Liberdade, além de empresários gaúchos e jornalistas, como Augusto Nunes, que à época trabalhava no grupo RBS, entre tantos outros.

Na época, com 28 anos — e sem noção da minha pouca idade — tive a honra, o prazer e a sorte desse convívio, que certamente moldou minha visão de mundo. Lembro que dirigia pela capital na companhia de Llosa, Francis e Campos. Os três, que não se conheciam, conversavam animadamente sobre diversos temas enquanto circulávamos entre compromissos pela cidade. Sobre o capô ainda quente do carro — que, infelizmente, vendi (o Lanterna na Popa, especialmente, é muito pesado) — eles autografaram os livros que ainda povoam minha biblioteca e preencheram, por muito tempo, o meu imaginário.

Entre os erros que cometi, houve um em especial que acabou se revelando uma previsão acertada: induzi Eduardo Giannetti, então mediador do Fórum, diante de 1.300 pessoas, a dizer — no currículo que preparei — que Llosa havia recebido o Prêmio Nobel de Literatura. Algo que só viria a acontecer 15 anos depois. Giannetti, ao ser gentil e humildemente corrigido por Llosa publicamente, entre constrangido e contrariado, saiu-se bem ao invocar a possibilidade de se tratar apenas de uma provável premonição — em vez de simplesmente me imputar a responsabilidade pelo erro.

A obra de Llosa é justamente saudada mundo afora. Além de seus conhecidos romances e da biografia precoce que culmina com sua candidatura à presidência do Peru — contada na obra Peixe na Água — há um livro que muito me impressiona: o ensaio O Chamado da Tribo. Já na introdução, Llosa deixa clara sua incrível amplitude intelectual, sua ilustrada visão de mundo e uma capacidade invejável de concisão. Inspirado em Edmund Wilson e seu magnífico Rumo à Estação Finlândia, Llosa, com leveza e profundidade, estabelece um diálogo com alguns dos pensadores que o influenciaram: Adam Smith, José Ortega y Gasset, Friedrich Hayek, Karl Popper, Raymond Aron, Isaiah Berlin e Jean-François Revel.

Olhando para o mundo de hoje — e para os riscos às liberdades e à globalização — fico imaginando, 30 anos depois, como seriam os diálogos entre Llosa, Francis e Campos sobre as incertezas, o desconhecido, as tarifas protecionistas, o nacionalismo, o mercantilismo, a falta de liberdade política, o cerceamento à liberdade de expressão, a insegurança jurídica e, infelizmente, as guerras. Daria um Fórum e tanto. Mesmo com tantos avanços, o mundo pendular, convenhamos, é sempre um desafio.

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