Economia em pauta (Flickr/Creative Commons/peddhapati)
Colunista - Instituto Millenium na Exame
Publicado em 1 de setembro de 2025 às 20h47.
Inovação, estabilidade e confiança
A história da moeda é também a história da confiança. Por séculos, sociedades dependeram da solidez das instituições financeiras para garantir a estabilidade da moeda e a confiabilidade dos sistemas de pagamento. Hoje, com o avanço das tecnologias digitais e a popularização das criptomoedas, o sistema monetário global encontra-se diante de uma nova encruzilhada: como combinar inovação com segurança, eficiência com estabilidade, e liberdade individual com interesse público?
É nesse contexto que emergem as moedas digitais de bancos centrais (CBDCs), apontadas como uma das inovações mais potencialmente disruptivas do sistema financeiro contemporâneo. Elas representam uma tentativa de incorporar as vantagens técnicas da revolução cripto—programabilidade, tokenização e liquidação instantânea, sem abdicar da âncora de confiança para o sistema monetário que os bancos centrais podem oferecer. O Drex, por exemplo, que é a moeda digital do Banco Central do Brasil e que está em fase de testes para sua implementação, foi concebido para usar a tecnologia das criptomoedas visando maior eficiência, otimização e menor custo das transações.
Oportunidades e benefícios
As CBDCs oferecem uma ampla gama de benefícios. As CBDCs podem ampliar a inclusão financeira, permitindo que pessoas sem conta bancária tenham acesso a um meio de pagamento seguro e barato. Experiências como o Pix no Brasil demonstram o potencial de sistemas digitais de pagamentos para integrar milhões de pessoas à economia formal em curto espaço de tempo.
Elas podem também aumentar a eficiência das transações, reduzindo custos para consumidores e empresas. Pagamentos domésticos e internacionais tornam-se mais rápidos, transparentes e acessíveis, o que impulsiona o comércio e fortalece cadeias globais de valor. Para países emergentes, a redução do custo de remessas ao exterior é especialmente relevante.
Além disso, as CBDCs reforçam a integridade econômica ao dificultar atividades ilícitas que se apoiam no anonimato do dinheiro físico, como lavagem de dinheiro, evasão fiscal e financiamento ao terrorismo. Ao formalizar transações, favorecem uma maior base tributária e reduzem riscos associados ao manuseio de dinheiro vivo.
Por fim, As CBDCs exploram novas fronteiras tecnológicas. A programabilidade dos pagamentos e a tokenização de ativos abrem caminho para aplicações como contratos inteligentes, liquidação simultânea de operações e maior integração entre sistemas financeiros nacionais e internacionais.
Riscos econômicos e políticos
Por outro lado, os riscos de CBDCs são consideráveis. O primeiro deles é o da estabilidade financeira. Se cidadãos migrarem seus depósitos de bancos comerciais para carteiras digitais de bancos centrais, pode haver esvaziamento do sistema bancário tradicional, dificultando a concessão de crédito e obrigando os bancos centrais a decidirem diretamente quem deve receber financiamento—uma função que tradicionalmente pertence ao setor privado. O risco aqui é duplo: em primeiro lugar, isto representaria, na prática, uma estatização do sistema financeiro onde o Banco Central, que não tem expertise na tarefa de alocar crédito e está mais sujeito a captura política do que bancos comerciais em um sistema bancário competitivo, canalizaria os empréstimos sem sólida base econômica para justificar suas decisões. Em segundo lugar, na ausência de um sistema bancário privado, os mecanismos de transmissão da política monetária se alteram drasticamente, podendo levar à instabilidade macroeconômica.
Outro risco diz respeito à privacidade. Diferentemente do dinheiro vivo, uma CBDC exigiria registro e monitoramento de transações para prevenir abusos. Entretanto, isto cria o risco de vigilância excessiva e de erosão da autonomia individual nas relações econômicas e provavelmente políticas. Alguns países, com governos de tendência mais autoritária e que não têm uma forte preocupação com direitos e liberdades individuais, podem enxergar na moeda digital uma forma adicional de controlar os seus cidadãos. Tais governos podem, por exemplo, promover pescas probatórias para perseguir desafetos políticos ou promover sua desmonetização, ou seja, impedir sua participação com transações no sistema financeiro. Estas ações são mais difíceis de ocorrer com um sistema financeiro com bancos privados competitivos.
A concorrência e inovação também podem ser afetadas. Uma infraestrutura digital centralizada pode reduzir os incentivos para que o setor privado desenvolva soluções de pagamento mais eficientes e baratas. Ao mesmo tempo, a proliferação de moedas privadas e plataformas descentralizadas pode fragmentar o sistema, criando vulnerabilidades em momentos de crise.
Por fim, há o risco de maior desigualdade e concentração de poder, coisa que frequentemente andam juntas. As inovações financeiras podem beneficiar sobretudo os mais ricos tecnologicamente e politicamente conectados. Grandes corporações tecnológicas podem ganhar ainda mais poder ao controlar simultaneamente comércio e finanças digitais e, claro, retribuir ao sistema político pelas benesses recebidas.
CBDCs: Para o bem ou para o mal?
Assim sendo, as CBDCs não representam apenas uma inovação tecnológica, elas têm grande alcance econômico e político. Assim como toda inovação tecnológica, que pode ser usada para melhorar a qualidade de vida da população de um país ou para ameaçar e subjugar esta população, as moedas digitais de bancos centrais poderão democratizar o acesso ao sistema financeiro, baratear transações, reforçar a integridade econômica e sustentar a confiança no dinheiro em um mundo cada vez mais digital. Mas, se mal implementadas, poderão fragilizar bancos, ampliar desigualdades e comprometer liberdades individuais.
Certamente, o futuro da moeda digital dependerá menos da tecnologia em si e mais da qualidade das instituições políticas e econômicas que definem seu uso, além do compromisso do Estado em colocar o interesse público, que quer dizer interesse de todos e não de alguns grupos privilegiados, no centro da inovação monetária.