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O deslizamento de Blatten e nossa fé econômica em um Deus Ex Machina 

Além dos riscos geológicos, o descongelamento do permafrost é também uma grave ameaça climática global

 (Marco Bottigelli/Getty Images)

(Marco Bottigelli/Getty Images)

Publicado em 5 de junho de 2025 às 07h40.

Sempre tento aproveitar o espaço desta coluna para trazer reflexões que conectem os desafios ambientais, especialmente os climáticos, com conceitos claros de Economia e Ciência Política. Acredito que soluções baseadas em mecanismos de mercado têm papel fundamental na resolução de problemas complexos, e que não avançaremos sem o uso intenso de tecnologia. Busco sempre evitar parecer alarmista ou pessimista, pois esses sentimentos nos paralisam.  

A teoria econômica básica torna essa leitura bastante direta: a crise climática é, antes de tudo, fruto de uma externalidade negativa. Como nunca houve preço embutido nos bens e serviços para emitir gases de efeito estufa, a atmosfera virou um bem “gratuito” e, como manda a lógica do incentivo, usamos demais esse recurso comum, uma “tragédia dos comuns”, sobretudo nos países mais ricos, a partir da revolução industrial. 

Mas hoje sinto necessidade de adotar um tom um pouco diferente. Percebo que nós, brasileiros, somos culturalmente privilegiados pelo otimismo. Acreditamos, quase de forma instintiva, que somos uma nação “abençoada por Deus e bonita por natureza”, distante de terremotos, furacões, vulcões e outros fenômenos naturais.

Esse otimismo convive, curiosamente, com nossa realidade econômica, marcada por uma população de renda ainda baixa para padrões globais. Mesmo assim, seguimos convencidos de que o futuro nos reserva um lugar como uma iminente potência global, quem sabe a próxima potência verde? Honestamente, acredito que, nessa nova economia sustentável, nenhum país esteja tão bem posicionado quanto o Brasil. 

No entanto, é preciso garantir que esse otimismo não nos cegue para o que está acontecendo ao redor do mundo. Na semana passada, o vilarejo suíço de Blatten foi praticamente destruído após o deslizamento de um pedaço da geleira Birch. Felizmente, graças à tecnologia, o risco havia sido detectado a tempo e as casas estavam evacuadas. Até agora, aparentemente, apenas um morador segue desaparecido.

Podemos, claro, racionalizar que se trata de um caso isolado, lembrando que geleiras sempre sofreram rupturas e deslizamentos ao longo da história, e que a tecnologia do lado da adaptação climática permitiu que não houvesse feridos. Mas para onde essas famílias irão? Quantos outros vilarejos e cidades alpinas terão que se realocar nos próximos anos?  

Eventos desse tipo têm se tornado mais frequentes e mais intensos em diversas regiões montanhosas do planeta. Isso não é coincidência, trata-se de uma consequência direta do efeito estufa, que está descongelando não apenas o gelo superficial das geleiras, mas também o permafrost, uma camada de solo e rocha permanentemente congelada que atua como uma espécie de "cimento térmico" nas encostas. 

Embora o permafrost seja mais conhecido por sua presença nas regiões do Ártico, ele está amplamente distribuído em áreas de alta altitude, como os Alpes europeus, onde sua estabilidade térmica é fundamental para manter a integridade das montanhas. Com o aumento das temperaturas médias globais, essa camada congelada começa a derreter, enfraquecendo drasticamente a estrutura das encostas e multiplicando os riscos de deslizamentos e colapsos. O Instituto Suíço de Pesquisa de Neve e Avalanche (SLF) já documenta um aumento significativo na ocorrência de eventos desse tipo nas últimas décadas. 

Além dos riscos geológicos imediatos, o descongelamento do permafrost é também uma grave ameaça climática global. À medida que derrete, libera grandes quantidades de metano, gás de efeito estufa com potencial de aquecimento muito maior que o do CO₂ (cerca de 86 vezes no recorte temporal de 20 anos). Esse processo é um exemplo clássico de ciclo de retroalimentação climática (feedback loop): o aquecimento gera mais descongelamento, que gera ainda mais aquecimento. O economista William Nordhaus, vencedor do Nobel por seus modelos integrados de economia e clima, alerta que esses ciclos, como o do permafrost, ampliam significativamente o custo social das emissões, e não devem ser ignorados por tomadores de decisão. 

A percepção desses impactos mais imediatos e concretos, como deslizamentos frequentes e ameaças diretas às comunidades montanhosas, talvez explique por que os países europeus, mesmo sendo historicamente grandes emissores, lideram atualmente as discussões da agenda climática. Não surpreende que, diante de ameaças visíveis, parlamentos europeus pressionem por metas climáticas mais duras e seguros residenciais já embutam esse risco. Afinal, é muito mais fácil reagir diante de consequências tangíveis e próximas do que frente a projeções abstratas. 

Mesmo assim, parte do mundo e muitos autoproclamados céticos esperam por uma solução do tipo deus ex machina – expressão vinda do teatro grego, que descreve o momento em que uma divindade aparece repentinamente para solucionar problemas aparentemente insolúveis da trama. Frente à complexidade, confiamos excessivamente que alguém surgirá com uma inovação tecnológica milagrosa capaz de resolver tudo sem que precisemos nos preocupar no presente, sem sacrifícios. 

Mas a inovação tecnológica não aparece do nada. Ela surge quando existe demanda, e a demanda só nasce quando há uma consciência clara do problema que estamos enfrentando. O carro elétrico só se tornou viável quando governos e consumidores se mobilizaram, criando uma demanda robusta. O mesmo acontece com energia solar, eólica e outras tecnologias limpas. Elas não nasceram de um estalar de dedos, houve um conjunto de escolhas que geraram o ecossistema necessário para que florescessem.  

No Brasil, já aprovamos recentemente a legislação sobre o mercado de carbono. Porém há um caminho longo e crítico para criar condições sólidas para que empresas e investidores possam tomar decisões que tornem investimentos consistentes com as agendas de mitigação atrativos financeiramente.  

Globalmente, embora diversos países já tenham mercados ativos de carbono, o desafio permanece: preços previsíveis e suficientemente altos para estimular a economia em direção às soluções que realmente precisamos. 

Ter clareza sobre o que está acontecendo não significa pessimismo. Significa criar condições reais para que possamos transformar nosso potencial natural e cultural em protagonismo real e sustentável na nova economia global. Quanto antes enxergarmos isso, melhor posicionados estaremos para aproveitar as oportunidades. 

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