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Real Digital? Não. Entenda por que o Drex não é o que parece

Entre modernização e risco de controle: por que o Drex é mais sobre eficiência do que sobre liberdade

 (Divulgação/Divulgação)

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Instituto Millenium
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Publicado em 3 de setembro de 2025 às 13h36.

Por Tiago Oliveira Mota

 

O conceito de moeda endógena é fundamental para entender a atual discussão sobre moedas digitais de bancos centrais e os impactos do Drex sobre o sistema financeiro brasileiro. Desde o século XX, consolidou-se a visão de que a maior parte da moeda em circulação não é emitida diretamente pelo Banco Central, mas sim pelos bancos comerciais quando concedem crédito. A cada empréstimo registrado, cria-se simultaneamente um ativo (o crédito concedido) e um passivo (o depósito à vista do cliente), expandindo a oferta monetária sem necessidade de emissão direta pela autoridade monetária. Essa característica torna a moeda “endógena”: sua quantidade depende da demanda por crédito e da disposição dos bancos em assumi-lo. Para os bancos centrais, essa lógica representa uma limitação, pois restringe sua capacidade de controlar diretamente a quantidade de dinheiro em circulação. Daí decorre o desejo, em alguns países, de superar essas "correntes" e ampliar os instrumentos de emissão direta, o que fortaleceria o controle do Estado sobre a oferta monetária.

É nesse contexto que surgem as chamadas moedas digitais dos bancos centrais, ou CBDCs (Central Bank Digital Currencies). O modelo mais transformador é o de CBDCs de varejo (retail CBDCs). Trata-se de carteiras digitais acessíveis diretamente à população, emitidas pelo Banco Central, nas quais cidadãos e empresas poderiam deter saldos sem a necessidade de bancos comerciais como intermediários.

Esse desenho rompe com a lógica endógena da moeda, aproximando-se de um modelo exógeno, no qual o Banco Central exerce controle direto sobre a circulação monetária. Suas vantagens incluem maior eficiência nos pagamentos, redução de custos em transferências internacionais, capacidade de vigilância contra crimes e estímulo à inovação financeira. Mas os riscos são igualmente expressivos: perda de privacidade, concentração de poder, vigilância em tempo real, controle estatal do dinheiro com prazos de validade ou juros negativos e o fortalecimento de políticas intervencionistas e dirigistas, com potencial de transformar a moeda em instrumento de coerção política e social.

A experiência chinesa ilustra esse ponto com clareza. Em 2020, a China se tornou a primeira grande economia a lançar oficialmente uma moeda digital soberana, o yuan digital. O projeto foi concebido para dar ao governo novas ferramentas de rastreamento em tempo real e para reduzir a dependência do dólar no sistema financeiro internacional. Entre os testes realizados estavam recursos de programabilidade, como a atribuição de prazos de validade ao dinheiro para estimular gastos em períodos de crise. A moeda também se mostrou apta a contornar sanções internacionais, ao permitir transações fora do sistema financeiro dominado pelo dólar. O potencial dessa tecnologia, em um regime autoritário, é evidente: vigilância total, intervenção econômica direta e reforço do controle social.

É importante, contudo, diferenciar esse modelo de CBDCs de varejo das CBDCs de atacado (wholesale CBDCs). No atacado, a moeda digital é restrita ao sistema financeiro, utilizada apenas nas relações entre bancos e Banco Central. Nesse formato, não há alteração na lógica da endogeneidade: a criação de moeda continua ocorrendo pelos bancos comerciais via concessão de crédito, e o Banco Central permanece sem controle direto sobre os agregados monetários. A vantagem desse arranjo está em sua capacidade de modernizar o sistema financeiro, tornando liquidações mais rápidas, baratas e transparentes.

Um exemplo concreto é a liquidação de títulos públicos: no sistema atual, uma compra pode levar até dois dias úteis (D+2) para se concluir; com uma CBDC de atacado, a liquidação poderia ocorrer em tempo real (D0), reduzindo custos e riscos operacionais. Ainda assim, mesmo nesse modelo, permanecem riscos residuais: a potencial perda de privacidade no nível institucional e, sobretudo, a possibilidade de que a infraestrutura criada para o atacado seja gradualmente expandida até alcançar o varejo.

É nesse último grupo que se insere o caso brasileiro, com o Drex. Inicialmente mal comunicado como um “Real Digital”, o Drex foi percebido pelo público como uma tentativa de lançar uma CBDC de varejo. No entanto, a realidade é distinta: trata-se de uma CBDC de atacado. Seu objetivo não é substituir os bancos comerciais, mas sim tokenizar as reservas bancárias — os depósitos que os bancos mantêm no Banco Central — e utilizá-las como base para modernizar o mercado financeiro.

Segundo declarações do presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, o Drex deve operar como uma rede de tokenização que amplia as possibilidades de crédito colateralizado e facilita o acesso a produtos financeiros, inclusive por meio de um futuro “superaplicativo” em que cidadãos poderão visualizar imóveis, veículos e ações em um só ambiente digital, oferecendo-os como garantias em operações de crédito (VALOR, 2025a).

Além disso, Galípolo tem enfatizado que o Drex não busca resolver a questão da endogeneidade da moeda, mas apenas modernizar a infraestrutura financeira. Em agosto de 2025, destacou que soluções como o Pix jáendereçaram as principais fricções do sistema de pagamentos que levaram outros países a avançar em CBDCs de varejo. O Drex, afirmou, “não mexe no conceito de moeda endógena e exógena”, estando “muito mais relacionado à tokenização de ativos” (VALOR, 2025b). Em outras palavras: enquanto a China utiliza seu yuan digital para ampliar mecanismos de vigilância e controle estatal, o Brasil utiliza o Drex como instrumento de eficiência, reconciliação de garantias e redução de custos de crédito.

Diante desse quadro, a conclusão crítica é clara: não há motivo para pânico em relação ao Drex em sua forma atual. Ele não é uma CBDC de varejo nem um dispositivo de vigilância em tempo real, mas uma evolução técnica do sistema financeiro, voltada a eficiência e modernização. Contudo, a linha que separa atacado e varejo pode ser tênue. Nada impediria que, em algum momento, um governo mais centralizador usasse a mesma infraestrutura do Drex para expandi-la até o público.

Nesse sentido, é correto afirmar que o Drex não é, por ora, um perigo, mas é igualmente correto lembrar que toda inovação pode ser apropriada pelo Estado como ferramenta de poder. Liberdade e privacidade são conquistas frágeis e só sobrevivem quando defendidas com firmeza. O Drex atual não é uma ameaça, mas a vigilância da sociedade é a única garantia de que não se tornará uma.