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Belém: a política pública de Antônio Lemos deve servir como inspiração para as ações de adaptação para as cidades (Carmen Fukunari/Exame)
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Publicado em 17 de novembro de 2025 às 13h38.
Texto de Daniel Nardin/Edição Exame
Num distante 15 de novembro de 1902, o intendente de Belém Antônio Lemos apresentava no Conselho Municipal um relatório das principais ações ao longo dos cinco anos de sua gestão. O documento é equivalente à atual prestação de contas de um prefeito para os vereadores da Câmara Municipal.
O texto de Antônio Lemos parece ter antecipado o momento que Belém vive hoje, 123 anos depois, com milhares de estrangeiros na cidade por conta da realização da COP30. “Possui a nossa capital, nas suas diferentes praças, formosos jardins públicos, promovendo recreio, encanto e admiração do forasteiro apreensivo que, mal informado, desembarca cheio de desconfiança no solo paraense”, diz o “prefeito” do final do século XIX, revelando que o preconceito com o Norte do país não é de hoje e só ganhou novos contornos com a decisão da capital paraense receber o evento global.
No texto, Antônio Lemos afirma que mandou providenciar o serviço de jardinagem em mais praças e ruas por entender como algo de “necessária importância”, pensando nos “direitos da população flagelada pela agrura (agressividade) do clima”, afirma.
No documento, ele parece prever a diferença de sensação térmica sentida todos os dias pelos moradores da capital paraense e, agora, pelos estrangeiros ao deixar os hotéis do centro da cidade, sob a sombra das mangueiras e depois ter de caminhar entre a barreira de segurança da organização e a entrada da Blue Zone, no Parque da Cidade, sem árvores. “Em virtude do plano administrativo por mim adotado, esses jardins serão, daqui a poucos anos, magníficos parques, prestando aos habitantes da cidade um grato refrigério mesmo nas horas mais duras do dia”, diz Antonio Lemos.
O historiador Michel Pinho comenta que, nos séculos 18 e 19, era comum encontrar nas ruas de Belém as samaumeiras, laranjeiras e taperebazeiros. Mas, o cenário começa a mudar justamente com Antônio Lemos. “Ele decidiu alargar as ruas e arborizar a cidade. E escolheu a mangueira, que vem da Ásia. A decisão política foi de plantar duas mil mangueiras para ter a sombra que encontramos hoje ao caminhar nesse sol inclemente de Belém", comenta Pinho, que também produz conteúdos sobre a história da cidade em seu perfil no Instagram.
A divulgação do legado de Antonio Lemos para a cidade tem sido um dos focos do professor Júlio Patrício, doutor em desenvolvimento socioambiental pelo Núcleo de Altos Estudos da Amazônia, da Universidade Federal do Pará (UFPA) e professor no Centro Universitário do Estado do Pará (Cesupa). Ele lamenta que, nas últimas décadas, os prefeitos municipais tenham abandonado projetos de arborização e a expansão da cidade não levou adiante o que se observa no centro. Apesar do “título” de cidade das mangueiras, Belém é a penúltima capital brasileira em nível de arborização, conforme levantamento do IBGE de 2010.
“As pessoas que estão na cidade estão encantadas com as mangueiras, como Antônio Lemos disse. Ele viu, naquela época ainda, a necessidade da arborização para o conforto térmico, o quanto essa arborização tem um ponto fundamental para a saúde física e mental, considerando o estresse e as condições que a gente vive num lugar extremamente quente”, avalia Patrício.
O problema é que, como lembra Patrício, apenas uma pequena parte da cidade e da população tem acesso às sombras da mangueira. “As mangueiras demarcam uma divisão de classes sociais em Belém. Os bairros centrais, com classe mais privilegiada, tem mangueiras, o restante da cidade, não”, lamenta.
Para o professor do Cesupa, os debates sobre adaptação e cidades resilientes devem considerar exatamente que se percebe em Belém. É aí que fica mais evidente, entre tantos recortes, o conceito de justiça climática. Todos os moradores de Belém estão expostos ao mesmo clima. Mas, nem todos estão tão vulneráveis. A periferia, sem acesso a saneamento básico e tantas outras necessidades, também não dispõe de árvores nas ruas ou parques e praças próximas. Com isso, a população fora do centro não está também exposta, mas sim mais vulnerável ao desconforto térmico. Um desconforto cada vez maior, uma vez que em 50 anos, a média da temperatura máxima em Belém já aumentou 1,9 graus Celcius.
O engenheiro florestal Wendell Andrade, mestre em desenvolvimento local pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e especialista em políticas climáticas na iniciativa Política por Inteiro, no Instituto Talanoa, reforça essa diferença térmica como um exemplo de racismo climático. A condição das periferias, como o exemplo de Belém, escancara a desigualdade social nas cidades brasileiras e é tema central de pesquisas nas universidades sediadas na capital.
“Você pode encontrar uma série de pesquisas que mostram evidências científicas da diferença de temperatura no mesmo horário entre, por exemplo, a Avenida Perimetral e a Avenida Almirante Barroso, sem árvores e nem tão distantes assim do centro com outras avenidas centrais e arborizadas, como a Avenida Nazaré, Magalhães Barata e Bráz de Aguiar. Experimente caminhar nesses lugares no mesmo horário, como às duas da tarde e qualquer pessoa nota isso”, disse.
Para Wendell, a política pública de Antônio Lemos deve servir como inspiração para as ações de adaptação para as cidades. “O Antônio Lemos podia não ter o conhecimento sobre adaptação climática que temos hoje, mas a decisão dele foi baseada num espírito coletivo, de bem estar comum, algo que a gente entende que não necessariamente está na pauta dos prefeitos hoje em dia no Brasil”, lamenta.
O engenheiro reforça que Belém, por estar situada próxima da Linha do Equador e no bioma Amazônia, é uma região com altas temperaturas, com clima quente e úmido. “Sempre fomos uma cidade quente e as ações do Antônio Lemos pensaram nesse sentido. O que não se pode tolerar é que nossa cidade seja ainda mais quente por conta da emergência climática e não se tome nenhuma medida de planejamento urbano para isso”, reforça.
Nesse sentido, mais do que discursos e celebrar a vinda da COP30 para Belém - que inclusive encerra em alguns dias - um dos legados esperados para Belém vai além das obras de infraestrutura realizadas para receber o evento e sim ações permanentes para a população local. Para Wendell Andrade, um dos caminhos - entre muitos necessários - é promover maior arborização da cidade.
Na última semana, o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) lançou o Plano Nacional de Arborização Urbana (Planau), durante a programação da COP30. Segundo o secretário nacional de Meio Ambiente Urbano e Qualidade Ambiental do MMA, Adalberto Maluf, as populações que vivem nas cidades brasileiras têm poucas árvores próximas às suas moradias.
De acordo com Maluf, o plano foi estruturado com base na estratégia 3+30+300, desenvolvida pelo pesquisador Cecil Konijnendijk, em 2021.
“Nós seguimos muito esse princípio internacional para que todos tenham no mínimo três árvores na sua rua, que todos os bairros tenham no mínimo 30% de áreas verdes, isso é importante para a questão climática, é importante para a biodiversidade, e ter toda a população brasileira vivendo no máximo até 300 metros de uma área verde”, diz.
O engenheiro Wendell Andrade arremata que a expectativa é que o plano sirva de base e diretriz para ações práticas nos próximos anos. “Esperamos que esse plano federal estimule os estados e municípios a fazer ações similares. É uma regra de bem viver que ataca uma série de pontas com uma só ação. As cidades costumam ser grandes produtoras e exportadoras de problemas. Mas, com arborização, as cidades podem ficar não só mais bonitas, mas prestar esse serviço para a saúde e para um olhar mais ecossistêmico, sem custo alto para o orçamento”, destaca.