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"Se o Brasil quiser, de fato, ser protagonista no mercado global de hidrogênio, o momento de acelerar é agora"
Publicado em 15 de julho de 2025 às 10h46.
Por Cila Schulman*
A navegação ainda opera como uma das grandes zonas de conforto do carbono. Enquanto carros elétricos ganham protagonismo na corrida pela descarbonização, os barcos seguem à deriva, movidos majoritariamente por combustíveis fósseis altamente poluentes. Essa inércia, no entanto, tem data para acabar. A Organização Marítima Internacional (IMO) e grandes armadores globais já firmaram compromissos para zerar as emissões líquidas do setor até 2050, acelerando a pressão sobre portos, frotas e cadeias logísticas.
No Brasil, país com uma das maiores redes hidrográficas do planeta, insistir em motores sujos é desperdiçar vantagem competitiva e adiar o inevitável. Descarbonizar a navegação não é mais escolha — é uma exigência de mercado, de reputação e, acima de tudo, de sobrevivência climática.
Nosso recente levantamento do Ideia Instituto de Pesquisa, apresentado no Brazil Forum UK, em junho de 2025, que ouviu 1.502 pessoas, revela sinais importantes de como a sociedade brasileira começa a enxergar o hidrogênio de baixa emissão como parte da solução para a mobilidade — inclusive no transporte fluvial e marítimo, historicamente deixado à margem das inovações energéticas. Embora o nível de familiaridade com o tema ainda seja modesto, o debate sobre transição energética avança no imaginário coletivo.
Quando questionados se o Brasil pode se tornar uma referência mundial no uso de hidrogênio, 26% dos entrevistados responderam positivamente e 33% disseram que temos potencial, só faltam investimentos — um indicativo de que a população já vislumbra o protagonismo brasileiro nesse campo, mesmo antes da adoção em larga escala.
Da mesma forma, 37% afirmaram já ter ouvido falar em veículos movidos a hidrogênio, como ônibus, caminhões ou embarcações. O índice revela que o hidrogênio entrou na pauta pública — um passo essencial para acelerar políticas e investimentos.
Na Amazônia, o debate ganha contornos práticos: 35% acreditam que o transporte fluvial na região deveria ser movido a hidrogênio de baixa emissão. O dado reflete uma combinação de pragmatismo e otimismo tecnológico, típica de sociedades em transição.
O interesse por embarcações movidas a energia limpa também merece atenção. Apenas 15% dos entrevistados afirmaram que, se pudessem escolher, não optariam por uma lancha ou barco movido a hidrogênio, elétrico ou híbrido — uma sinalização clara de demanda potencial e um recado direto ao mercado e aos formuladores de políticas públicas.
Iniciativas como o JAQ Hidrogênio, projeto brasileiro de navegação sustentável que será apresentado na COP30, reforçam esse movimento. Voltado para testar e demonstrar o potencial do hidrogênio no transporte fluvial, especialmente na Amazônia, o JAQ simboliza o tipo de solução concreta que o país precisa desenvolver para transformar percepção em prática.
Além do hidrogênio, outras soluções energéticas sustentáveis também ganham relevância no debate sobre a descarbonização da navegação no Brasil. O etanol, com sua longa trajetória na matriz de transportes terrestres, começa a ser testado em motores marítimos, enquanto o biodiesel já é utilizado em embarcações de apoio e transporte de carga. Também entram no radar a amônia e o metanol, combustíveis com potencial para o transporte marítimo de longo curso e já em testes em mercados internacionais.
Com abundância de biomassa e tradição em biocombustíveis, o país tem a oportunidade de desenvolver uma abordagem multivetorial para o transporte aquaviário, combinando diferentes tecnologias limpas adaptadas às realidades regionais, como os rios da Amazônia e o litoral industrializado do Sudeste.
Apesar do interesse, os obstáculos são evidentes. O principal deles, citado por 38%, é a falta de incentivos e políticas públicas. Já para 28%, seria o custo. O hidrogênio de baixa emissão ainda tem preço elevado quando comparado a combustíveis fósseis — uma realidade compartilhada com países como Alemanha, Japão e Estados Unidos, que têm avançado graças a uma combinação de subsídios, incentivos fiscais e investimentos robustos em infraestrutura.
O Brasil começou a estruturar o seu caminho com o Programa Nacional do Hidrogênio (PNH2), que estabelece diretrizes para o desenvolvimento da cadeia produtiva, com foco em produção e uso do hidrogênio em setores estratégicos, como transportes. Estados como Piauí, Ceará, Bahia e Rio de Janeiro já anunciaram os seus projetos, enquanto o Porto de Pecém (CE) se prepara para ser um hub de exportação. Em São Paulo, a primeira estação de abastecimento de hidrogênio para ônibus já entrou em operação.
No plano legislativo, o Congresso Nacional estabeleceu o Marco Legal do Hidrogênio, um passo essencial para dar segurança jurídica e atrair investimentos ao setor.
O Brasil possui vantagens naturais relevantes: uma matriz elétrica majoritariamente renovável e grande potencial de geração solar e eólica, o que reduz a pegada de carbono na produção do hidrogênio. Além disso, setores como transporte público, logística de carga pesada e transporte fluvial na Amazônia despontam como áreas estratégicas para aplicação.
Mas o avanço depende da combinação entre políticas públicas, investimentos privados e uma sociedade cada vez mais informada. A disposição da população, já revelada na pesquisa, é um sinal positivo. Existe demanda latente. O que falta é oferta, escala e política industrial.
No cenário internacional, o hidrogênio já é peça-chave nas estratégias de descarbonização de grandes economias como União Europeia, Japão, Estados Unidos e Reino Unido.
Portos como o de Roterdã (Holanda), Aberdeen (Reino Unido) e os hubs nórdicos se posicionam como centros tecnológicos dessa transição. A Noruega, por exemplo, já opera balsas movidas a hidrogênio, enquanto a Alemanha investe em infraestrutura portuária e soluções logísticas para o combustível. A França, com projetos como o Energy Observer, e a Coreia do Sul, com gigantes industriais no setor naval, também estão na vanguarda dessa transformação.
Austrália e China avançam como grandes produtores e desenvolvedores de soluções logísticas e de transporte associadas ao hidrogênio, com foco em exportação e uso interno, respectivamente.
O Brasil, com sua matriz elétrica renovável e potencial portuário, tem condições de integrar essa rota global — mas precisa acelerar o passo.
Se o Brasil quiser, de fato, ser protagonista no mercado global de hidrogênio, o momento de acelerar é agora. Isso significa investir em tecnologia e infraestrutura, ampliar o debate público e construir uma política de longo prazo que conecte indústria, governo e consumidores.
A janela de oportunidade está aberta. Resta saber se teremos coragem — e estratégia — para atravessá-la.
*Cila Schulman é CEO do Ideia Instituto de Pesquisa e do JAQ Hidrogênio