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Licença-paternidade: nem tudo o que parece é

Atualmente, mais de 100 projetos de lei sobre o tema tramitam na Câmara dos Deputados e propõe uma licença estendida para os pais passarem mais tempo com os recém-nascidos

Desde a Constituição de 1988, pais brasileiros contam com uma licença-paternidade de apenas 5 dias corridos (Halfpoint/Thinkstock)

Desde a Constituição de 1988, pais brasileiros contam com uma licença-paternidade de apenas 5 dias corridos (Halfpoint/Thinkstock)

EXAME Plural
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Publicado em 26 de agosto de 2025 às 10h20.

Última atualização em 26 de agosto de 2025 às 10h49.

*Por Carolina Ragazzi

Num país historicamente marcado por déficits fiscais e escolhas orçamentárias de curto prazo, toda nova proposta de gasto público é submetida a intensas lentes de escrutínio.

O problema é que, ao nivelar todas as políticas com a mesma régua, corre-se o risco de relegar investimentos de impacto estrutural ao limbo do “gasto supérfluo”.

Um dos exemplos mais emblemáticos dessa miopia fiscal é a ausência de uma licença-paternidade compatível com a realidade contemporânea — tanto do ponto de vista social como econômico.

Desde a Constituição de 1988, pais brasileiros contam com o mesmo prazo do Carnaval para cuidar de seus filhos recém-nascidos por meio de licença-paternidade de 5 dias corridos.

O dispositivo, criado de forma provisória, até hoje não foi regulamentado como manda o texto constitucional. Mesmo após o Supremo Tribunal Federal julgar a histórica omissão do Congresso Nacional e estabelecer um prazo de 18 meses para a regulamentação, o tema continua travado em Brasília — prazo que, aliás, expirou em julho de 2025.

Atualmente, mais de 100 projetos de lei sobre o tema tramitam apensados na Câmara dos Deputados. Grupos de trabalho e frentes parlamentares foram constituídos.

Mas o verdadeiro gargalo parece residir não apenas em consensos fiscais ou ideológicos, e sim em uma barreira menos tangível: a falta de entendimento político sobre a amplitude dos benefícios dessa política pública. Não se trata de concessão ou romantismo, mas de estratégia nacional de desenvolvimento.

Estudos científicos têm demonstrado que a presença ativa do pai nos primeiros meses de vida do bebê é o principal preditor da sua presença contínua até a fase adulta.

Isso significa que permitir que homens se vinculem a seus filhos logo no nascimento não é um luxo emocional, mas uma estratégia objetiva para reduzir abandono, fortalecer vínculos familiares e formar adultos mais saudáveis. E antes que a leitura superficial nos leve a conclusões precipitadas de que isso se trata de correlação e não causa-consequencia, é válido um “double click” na tese.

Uma correlação se dá quando acontecimentos distintos coincidem, mas um não influencia a ocorrência do outro: o sol nasce e o galo canta às 5 horas da manhã – são fatos correlatos. Ninguém em sã consciência poderia afirmar que o sol nasceu porque o galo cantou.

Mas hoje temos evidências para afirmar que porque pais que gozam de uma licença paternidade ampliada e se engajam nos cuidados de seus filhos, eles permanecem a eles conectados ao longo da vida.

A neurociência liga os pontos. Por décadas, acreditamos no instinto materno como um dom. Para tentar explicá-lo, pesquisadores focaram em descobrir as mudanças fascinantes que ocorrem no cérebro materno que a capacitam para cuidar com exímio de um bebê recém-nascido, mesmo sem qualquer experiência.

O que só fora investigado mais recentemente é que essas mesmas mudanças também ocorrem no cérebro do pai que se engaja e se desafia em encarar tal missão.

A comunidade científica demonstrou de forma contundente a neuroplasticidade em adultos e que a transição para a parentalidade, para mulheres e homens, é um janela-chave para a capacidade do cérebro de alterar estrutura e função em resposta a experiências e ao ambiente.

Pesquisadores como Darby Saxbe, Ph.D. pela University of Southern California, têm investigado como o cérebro dos pais se transformam quando expostos de forma intensa à experiência parental.

Quanto mais tempo o pai passa com o recém-nascido, maiores são as alterações funcionais e estruturais em áreas cerebrais ligadas à empatia, regulação emocional e capacidade de cuidado. Ou seja: pais também têm “instinto” — mas ele precisa de prática para florescer.

Embora a licença-paternidade não garanta a construção do vínculo, dado que depende do engajamento paterno durante o período de licença, a falta dela certamente o dificulta. Se a licença não é garantida, a ausência quase sempre é.

Não existe jogador profissional que tenha pulado a fase da escolinha. Com a paternidade, é a mesma coisa.

A ausência paterna não é apenas um drama individual. Ela tem impacto direto em indicadores de saúde mental, segurança pública e evasão escolar.

Para crianças do sexo masculino, o impacto é ainda mais gritante: meninos criados sem envolvimento paterno têm 14 vezes mais chances de cometer estupro, 20 vezes mais chances de terminar na prisão e 5 vezes mais risco de tirar a própria vida.

Em outras palavras: o Estado paga, e paga caro, por vínculos que ele próprio ajudou a inviabilizar. A ausência paterna é um dos principais detratores do bem-estar social e um dos principais vetores de reprodução da desigualdade.

Por isso, políticas que fomentem o cuidado compartilhado na primeira infância são vistas hoje como investimentos de alto retorno social.

O economista James Heckman, vencedor do Prêmio Nobel, comprovou em seus estudos que cada dólar investido nos primeiros anos de vida de uma criança retorna sete dólares à sociedade em ganhos de produtividade, redução de gastos com saúde e segurança, e melhora do desempenho educacional.

Heckman chama isso de “efeito multiplicador das habilidades”: crianças que recebem cuidado adequado desenvolvem competências cognitivas e socioemocionais mais cedo — e isso molda toda a sua trajetória de vida, pois são capazes de fazer escolhas melhores em todos os âmbitos, reduzindo a necessidade de intervenções corretivas mais caras no futuro.

As perdas não se limitam aos pais e filhos. Ao privar os pais do direito de cuidar, o sistema lança sobre as mães a inteira responsabilidade pelo bem-estar da família.

Mulheres brasileiras dedicam, em média, 21 horas semanais a tarefas domésticas, o dobro dos homens. Chefiam mais da metade dos lares, mas ainda carregam nas costas uma sobrecarga silenciosa que compromete sua saúde, renda, educação e autonomia.

A disparidade é ainda mais cruel com mulheres jovens, negras e periféricas, que enfrentam jornadas triplas e menor acesso a políticas de apoio. Não se trata de romantizar a paternidade, mas de reconhecer que sua fragilidade estrutural tem impactos profundos na saúde mental, no desenvolvimento emocional e no futuro das próximas gerações de brasileiros.

No Brasil, cerca de 7% das crianças nascem sem o registro do nome do pai na certidão, revelando um padrão de abandono que começa ainda no útero e raramente encontra resposta proporcional em termos de responsabilização legal ou social.

A negligência histórica com a paternidade ativa é tamanha que o sistema de saúde sequer dispõe de um código específico no CID para caracterizar o afastamento do trabalhador homem por motivo de cuidado parental. Em muitas empresas, a licença paternidade de 5 dias é classificada genericamente como “afastamento sem especificação”.

Em um reflexo quase simbólico dessa invisibilidade, enquanto eu escrevo esse artigo, até mesmo o corretor automático de texto insiste em sugerir a substituição do termo “licença-paternidade” por “licença-maternidade” — como se o primeira fosse uma ficção linguística. Apesar dos avanços sociais, os vestígios de um modelo ultrapassado de família ainda insistem em permanecer.

Ampliar a licença-paternidade não é um gesto simbólico, é uma engrenagem de política pública com impacto direto em múltiplas áreas: da segurança à educação, da saúde mental ao mercado de trabalho feminino. E como todo bom investimento, demanda visão de longo prazo, coragem política e capacidade de enxergar além do imediatismo fiscal.

Se a corresponsabilidade no cuidado não aconteceu pela lógica tácita de que nenhum bebê nasce só da mãe, precisamos de uma legislação que abrande pelo menos parte dos relevantes prejuízos psicológicos, sociais e econômicos da normalizada ausência paterna.

O Brasil não pode mais adiar essa agenda.

*Carolina Ragazzi é executiva, cofundadora do Mulheres do Mercado e mãe de Isabella, Matteo e Martina. Neste primeiro de uma série de cinco artigos, demonstra por que o compartilhamento de responsabilidades parentais é decisivo para o progresso feminino nas empresas.

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