Patrocínio:
Direito e tecnologia (the-lightwriter/Getty Images)
Redação Exame
Publicado em 15 de novembro de 2025 às 11h00.
Depois da Lei nº 14.478/2022 e do Decreto nº 11.563/2023, que definiram conceitos e atribuíram competência ao Bacen, faltava o desenho prático de como esse mercado passa a operar sob supervisão, ou seja, quem pode prestar serviços, quais modelos institucionais são admitidos, que exigências de capital, governança e controles se aplicam e de que maneira operações com ativos virtuais se conectam ao câmbio e aos fluxos de capitais.
No centro está a Resolução BCB nº 520, que define quem são essas prestadoras de serviços de ativos virtuais (SPSAV) e como elas podem atuar. A SPSAV passa a ser uma instituição autorizada pelo Banco Central, criada para prestar, em nome de clientes, serviços de compra, venda, troca, custódia, intermediação e outras atividades com ativos virtuais. O art. 4º classifica essas sociedades em três modalidades: intermediárias de ativos virtuais, responsáveis pela intermediação e pela estruturação de operações; custodiante, voltadas à guarda, controle e movimentação de criptoativos de clientes; e corretoras de ativos virtuais, que combinam intermediação e custódia e se aproximam do modelo de “exchange” hoje conhecido, mas agora submetido ao mesmo nível de exigência prudencial aplicável a instituições do Sistema Financeiro Nacional. As SPSAV só podem exercer as atividades previstas na resolução e na regulamentação complementar, o que limita a atuação fora do perímetro regulado.
Ainda, a Resolução nº 520 determina que, além das SPSAV também poderão prestar serviços de intermediação e de custódia de ativos virtuais os bancos comerciais, bancos de câmbio, bancos de investimento, bancos múltiplos, a Caixa Econômica Federal, as sociedades corretoras e distribuidoras de títulos e valores mobiliários e as corretoras de câmbio, com restrições específicas para estas últimas.
Para quem optar pela via da SPSAV, o art. 14 exige constituição como sociedade empresária limitada ou anônima, objeto social principal voltado às atividades de ativos virtuais e, no mínimo, três administradores responsáveis perante o Banco Central por temas sensíveis, como condução dos negócios, PLD/FT, controles internos e conformidade, gerenciamento de riscos e de capital e segurança cibernética.
O detalhe do rito de autorização está em norma própria, Resolução BCB nº 519, também publicada no dia 10 de novembro pelo Bacen, mas a 520 deixa claro o “quem” e o “como” que servirão de base para esse processo, inclusive ao impor que instituições já em atividade adequem políticas e processos a esse novo padrão.
No campo das obrigações, o texto é exigente e, logo no início, apresenta um glossário que não é meramente conceitual, contendo elementos centrais da regulação, tais como a definição de “ativo virtual referenciado em moeda fiduciária”, ou seja, as stablecoins lastreadas em moeda e títulos públicos emitidos pelo mesmo governo e a de “prova de reservas”, o mecanismo para demonstrar que a prestadora detém os ativos que declara ter em nome de clientes.
Os arts. 64 e seguintes da Resolução BCB nº 520 tratam da curadoria dos ativos virtuais que podem ser ofertados pelas prestadoras. A seleção, listagem, suspensão e deslistagem de tokens passa a depender de critérios claros, justificados, transparentes e amplamente divulgados, com políticas específicas que envolvem, no mínimo, a classificação dos ativos conforme a sua finalidade, a análise crítica da documentação e dos riscos inerentes, a vedação a criptoativos desenhados para favorecer anonimato abusivo, fraude, lavagem de dinheiro ou financiamento do terrorismo e a definição de regras de revisão periódica e de proteção de clientes em caso de suspensão ou deslistagem. Na prática, a lista de ativos disponíveis em cada plataforma deixa de ser apenas decisão comercial e passa a ser um processo de curadoria regulada.
Do ponto de vista organizacional, a SPSAV precisa funcionar como uma instituição financeira em matéria de governança, com estrutura mínima de administração, atribuições formais para PLD/FT, controles internos, riscos, capital e segurança cibernética, além de políticas que dialogam com a regulamentação já existente para esses temas.
No relacionamento com clientes, ainda que outras normas detalhem segregação de recursos e transparência, a Resolução nº 520 serve de eixo para exigir que processos, produtos, testes de segurança, prova de reservas e fluxos de informação sejam pensados desde a origem com esse desenho. E, sempre que a SPSAV contratar terceiros relevantes, como custodiante, provedores de liquidez, formadores de mercado, emissores de moeda eletrônica, ofertantes de contas de pagamento e prestadores de tecnologia diretamente ligados aos serviços de ativos virtuais, continua responsável pela conformidade, devendo avaliar a capacidade técnica do contratado, prever planos de contingência para incidentes e dar transparência ao papel desses parceiros.
Instituições financeiras tradicionais que já atuam com cripto também entram no radar. O art. 20 deixa claro que bancos, a Caixa, corretoras e distribuidoras, e corretoras de câmbio só podem prestar intermediação e custódia de ativos virtuais se observarem o regime da Resolução nº 520. Já o art. 22 cria um rito de transição, definindo que quem já estiver em atividade no mercado de ativos virtuais na data de entrada em vigor da norma deve, em até 270 dias, comunicar formalmente o Banco Central e ajustar processos para compatibilizar integralmente suas políticas com o novo marco, inclusive mediante certificação técnica independente que comprove o atendimento aos requisitos.
Um bloco específico da norma é dedicado às entidades constituídas no exterior. O art. 23 determina que a entidade estrangeira que, na data de entrada em vigor da Resolução nº 520, desempenhe atividades no mercado de ativos virtuais “no país” e queira continuar a atuar regularmente precisa, no prazo de 270 dias, transferir operações e clientes para uma instituição elegível prevista no art. 20 ou para uma SPSAV em funcionamento ou criada justamente para essa transição. Esse movimento deve respeitar princípios de continuidade, segurança, transparência e consentimento informado, além de observar requisitos de segregação patrimonial, governança, controles internos e proteção de dados previstos na legislação e na própria resolução.
A instituição sucessora assume integralmente a responsabilidade pelo atendimento dos clientes, pelos direitos e deveres a eles relacionados e pelo cumprimento de todas as exigências operacionais e regulatórias, sob pena de o Banco Central determinar a cessação das operações.
Mesmo sem detalhar o regime cambial, tema reservado à Resolução BCB nº 521, publicada no mesmo dia, a nº 520 antecipa que a intermediação de ativos virtuais pode envolver prestação de serviços no mercado de câmbio. O art. 7º inclui, entre as atividades das intermediárias, operações de prestação de serviços de ativos virtuais no mercado de câmbio, e a definição de prestadoras abrange tanto as SPSAV quanto as instituições financeiras autorizadas que atuem “no mercado de ativos virtuais na forma estabelecida por esta Resolução”.
Na prática, a mensagem é que o on-ramp e o off-ramp entre reais, moedas estrangeiras e cripto deixam de ser um “limbo contratual” e passam a integrar um desenho regulatório em que a prestação de serviços de ativos virtuais com componente cambial será feita por instituições autorizadas, sob regras de câmbio, capitais e PLD/FT alinhadas às demais operações reguladas.
O conjunto de comandos da Resolução BCB nº 520, portanto, não se limita a batizar um novo tipo de instituição. Ele regula a prestação de serviços de ativos virtuais e as prestadoras em si, já que define modalidades de atuação, delimita quem pode operar, estabelece padrões mínimos de governança, impõe obrigações relevantes no relacionamento com clientes, disciplina a adaptação de instituições brasileiras e estrangeiras que já atuam no mercado brasileiro e abre, de maneira explícita, a porta para serviços de ativos virtuais com componente cambial, aprofundados pelas normas de câmbio e capitais.
Para exchanges, fintechs e instituições financeiras, isso significa redesenhar estruturas e processos para acompanhar esse novo patamar de exigência. Para clientes e investidores, representa um passo relevante na direção de mais previsibilidade, transparência e proteção.
*Mauricio Vedovato, sócio do HRSA Sociedade de Advogados, atuação em Empresarial, Tecnologia, Internet e Blockchain. Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo. Mestrado em Ciências das Comunicações pela Universidade de São Paulo. Mestrado em Direito e Política do Entretenimento e da Mídia pela University of California, Los Angeles (UCLA).
Siga o Future of Money nas redes sociais: Instagram | X | YouTube | Telegram | Tik Tok