Inteligência Artificial

Brain Rot: um “vírus” cultural feito por IA

Bombardiro Crocodilo, Ballerina Cappuccina e Tun Tun Tun Sahur se tornaram febres instantâneas nas redes – mas o humor nonsense pode estar anestesiando o julgamento moral de uma geração

Ilustração gerada no ChatGPT (ChatGPT/Reprodução)

Ilustração gerada no ChatGPT (ChatGPT/Reprodução)

Miguel Fernandes
Miguel Fernandes

Chief Artificial Intelligence Officer da Exame

Publicado em 6 de maio de 2025 às 12h00.

No último feriado, fiquei com vergonha de mim mesmo.

Acordei cantarolando “tun tun tun sahur”, um refrão em indonésio que não sei o que significa. Culpado, fui pesquisar e descobri que milhões faziam o mesmo enquanto um tronco de madeira humanizado balançava um taco de beisebol na tela. O personagem chama-se Tung Tun Tun Sahur e nasceu em 1.º de março de 2025 como vídeo gerado por IA.

Logo em seguida, meu feed serviu o Bombardiro Crocodilo, um avião de guerra B-25 com cabeça de réptil que grita “bombeia bambini” num falso sotaque ítalo-inglês enquanto bombardeia… crianças na faixa de Gaza. E, não satisfeita, a IA completou o cardápio com a Ballerina Cappuccina: uma bailarina-capuccino que gira sem parar, também falante desse “italês” robotizado.

O “italiano” é lido por IA com sotaque de inglês americano. Essa mistura soa hilária porque lembra a caricatura de italiano que povoa nossa publicidade (“mamma mia!”) e porque o nonsense fonético combina com nosso humor de meme, quanto mais ridículo, melhor.

Memes que se auto-aperfeiçoam

O fenômeno não é novo, só que agora a máquina cria, cruza e refina esses memes sem intervenção humana:

  1. Geração automática – Ferramentas como Supermeme.ai e dezenas de APIs semelhantes conseguem produzir imagem, legenda e template em segundos, analisando o que está em alta naquele minuto.
  2. Composição modular – Um áudio-trend, uma estética-trend 3D viciante e uma micro-narrativa em rima italiana podem ser combinados algorítmica­mente em milhares de variações.
  3. Personalização total – O algoritmo de recomendação costura essas variações ao gosto de cada usuário, testando o que segura sua dopamina por mais tempo.

O resultado é um loop evolutivo: cada versão que rende engajamento vira alimento para gerar novas mutações, criando algo muito parecido com um vírus biológico que sofre mutação acelerada na natureza digital. É a máquina criando vírus para o cérebro humano.

Parece piada mas é sério

Nem toda mutação é inofensiva. Edições brain rot embutem símbolos e frases racistas sob a camada de piada absurda, diluindo crítica e tornando o extremismo “palatável”.

O Bombardiro Crocodilo faz piada com o ato de “bombardear crianças”; espectadores que não entendem a pseudo-língua apenas dançam, rindo do ritmo acelerado. Estudos de comunicação indicam que humor e nonsense são portas perfeitas para normalizar o preconceito. O riso anestesia o julgamento moral.

O que essa tendência indica

A IA já aprendeu a fabricar memética sob medida. A próxima fronteira é vender produtos e hackear estados mentais. O que impede esses algoritmos de programar emoções, impulsos de compra ou crenças políticas? Entender (e limitar) esse poder pode ser o maior desafio de ética e estratégia de negócios da década.

  • Economia da atenção radicalizada – O engajamento ultracurto domina os feeds. Marcas que ignoram a estética caótica da Geração Z correm o risco de ficar invisíveis; as que imitam sem cuidado podem se dar mal.
  • Responsabilidade algorítmica – Plataformas e anunciantes podem, sem perceber, financiar cadeias de conteúdo tóxico embutido nesse humor aparentemente inofensivo.
  • Saúde cognitiva da força de trabalho – Consumir horas de brain-rot reduz foco e profundidade. Incentive curadoria e pausas digitais ou a criatividade da equipe derrete junto com o feed.

Consumidores zumbis

A promessa é tão sedutora quanto o tun tun tun martelando a minha cabeça: ROI programável no lobo frontal. Quem dominar essa técnica primeiro pode saltar anos-luz à frente da concorrência, trocando campanhas sazonais por algoritmos que cultivam desejo 24×7.

Mas aqui vem uma questão importante: quanto vale um cliente que compra sem saber por quê?

Se esse sistema funcionar bem demais, corremos o risco de trocar pessoas por zumbis digitais – usuários que rolam, clicam e assinam sem consciência, até que a fadiga mental ou o despertar regulatório derrube tudo. A mesma engrenagem que gera pico de vendas hoje pode gerar, amanhã, boicote, processos e uma epidemia de desconfiança.

Você prefere operar o botão de compra direto no córtex do seu público ou construir uma marca que as pessoas escolham mesmo quando o telefone está no bolso?

Acompanhe tudo sobre:Inteligência artificial

Mais de Inteligência Artificial

IBM vira a chave e aposta tudo em IA corporativa, com foco em agentes que já ajudam até a Ferrari

Empresa 'anti-devs' atinge valorização de US$ 9 bilhões com ferramenta que escreve códigos sozinha

Sob pressão e em disputa com Musk, OpenAI diz que fundação sem fins lucrativos seguirá no controle

Por que o ChatGPT às vezes promete e não entrega?