Inteligência Artificial

Fundador da Wikipedia defende papel central do humano no saber diante da ascensão da IA

Para Jimmy Wales, IA deve apoiar, não substituir, editores humanos no combate à desinformação e na curadoria do conhecimento

Fundador da enciclopédia critica respostas automáticas e alerta para impacto da IA na qualidade do conhecimento livre

Fundador da enciclopédia critica respostas automáticas e alerta para impacto da IA na qualidade do conhecimento livre

Miguel Fernandes
Miguel Fernandes

Chief Artificial Intelligence Officer da Exame

Publicado em 20 de junho de 2025 às 13h14.

Última atualização em 20 de junho de 2025 às 13h20.

Durante a London Tech Week 2025, tive uma conversa com Jimmy Wales, o lendário cofundador da Wikipedia. Discutimos inteligência artificial generativa e o destino do conhecimento livre. Seu recado foi claro: automatizar não é sinônimo de acertar. A tensão entre automação e pensamento crítico foi o centro da conversa.

Essa tensão reflete um dilema maior que extrapola a Wikipedia. Ferramentas de busca com IA, por exemplo, já vêm “reempacotando” informação diretamente nas respostas, cortando o tráfego para as fontes originais. Em vez de levar o usuário a um site confiável, modelos generativos dão respostas prontas que ocultam problemas sérios de qualidade da informação.

Isso preocupa, e com razão: estudos recentes do Tow Center for Digital Journalism indicam que sistemas de busca com IA citam fontes incorretas ou produzem respostas erradas em mais de 60% das consultas.

Wales foi categórico ao dizer que não quer IA generativa escrevendo ou editando a Wikipedia. A força da Wikipedia está na profundidade e no detalhe que emergem do processo colaborativo humano, algo difícil de replicar por uma máquina sem incorrer em erros e generalizações. “O mundo depende da Wikipedia e os modelos de IA dependem da Wikipedia”, disse Wales enfaticamente.

Grande parte das IAs de linguagem foi treinada nos dados da Wikipedia, sugando esse conhecimento coletivo para dentro de seus modelos. Se a Wikipedia falhar em precisão, os robôs também falharão. “Não queremos ensinar robôs a serem tendenciosos; queremos acertar na essência humana da coisa”, pontuou o fundador.

Antes de pensar em substituir editores voluntários por algoritmos, é preciso reconhecer que pensamento crítico, discernimento de fontes e ceticismo saudável são habilidades tipicamente humanas, e vitais para o conhecimento confiável.

Fontes, atribuição e propriedade intelectual em jogo

Um dos tópicos mais espinhosos da IA é a atribuição de fontes e a propriedade intelectual. Durante a conversa, não pude deixar de recordar a reflexão que fiz anteriormente em “O fim da criatividade”, sobre a ética de algoritmos que aprendem com obras alheias. Naquele caso, questionei se era justo uma IA replicar o estilo de um artista. Agora, o paralelo com a Wikipedia salta aos olhos: milhões de páginas escritas por voluntários ao longo de 20+ anos estão sendo usadas para treinar sistemas de IA, e quantos desses sistemas devolvem o crédito?

A licença da Wikipedia (CC BY-SA) exige atribuição e compartilhamento pela mesma licença em usos derivados, mas as IAs generativas até agora não “citam” a Wikipedia quando reproduzem seu conteúdo. Como resultado, temos modelos colossais ganhando força com conhecimento livre, porém sem fortalecer o ecossistema de conhecimento livre de volta.

A Wikipedia adotou essa postura de abertura justamente porque ser copiada faz parte de sua estratégia de relevância. “Tudo era livremente licenciado. Dizíamos: pegue o conteúdo, coloque no seu site, faça o que quiser com ele”, contou-me Wales, relembrando os primórdios da enciclopédia. Essa abertura radical gerou um tráfego massivo de volta, graças aos links de atribuição obrigatória, e ajudou a Wikipedia a se consolidar.

Desinformação: o novo campo de batalha

Nos últimos anos, a Wikipedia orgulha-se de ser um bastião contra fake news, graças ao trabalho incansável de Wikipedianos que checam fatos e exigem fontes fiáveis. Mas a IA generativa chega bagunçando esse jogo: não apenas produz textos convincentes, como o faz alucinando dados e referências inexistentes.

Wales comentou que vê esses modelos atuais quase como alunos atrapalhados: não sabem dizer “não sei”, preferindo dar uma resposta qualquer mesmo quando não há certeza. Ele tem razão, pesquisas mostram chatbots entregando respostas erradas com tom professoral, ocultando incertezas.

Na visão de Wales (e concordo plenamente), a solução para a desinformação passa por educação e colaboração, não só tecnologia. Literacia midiática volta a ser palavra de ordem. “Precisamos ensinar as pessoas a checar fontes e não aceitar respostas de IA como oráculo infalível”.

Colaboração humano-máquina: o caminho a seguir

Não se trata de rejeitar a IA generativa (ela veio para ficar e tem vantagens claras de escala e velocidade), mas de colocá-la no papel certo. O que veremos nos próximos anos é a Wikipedia aumentada por IA, e não substituída. Pense em bots que sugerem referências de qualidade para um verbete em construção, ou que traduzam um artigo destacado do inglês para o português num clique, sempre com um editor humano validando e ajustando o tom. A IA fazendo o rascunho, e o humano lapidando a obra de arte.

Para líderes, CEOs, founders e executivos fica a lição ampliada dessa história. A adoção de IA por si só não garante vantagem competitiva, o diferencial está em como usamos a IA. Um estudo do Gartner mostrou que colaboradores com alta destreza digital (digital dexterity) podem ser até 95% mais produtivos do que seus pares. Essa destreza inclui saber integrar tecnologia de forma estratégica, com criatividade e pensamento crítico.

Em muitas empresas, o paradoxo da produtividade da IA tem sido justamente investir em ferramentas avançadas, mas falhar em preparar pessoas e processos para tirarem proveito delas.

Conclusão: equilíbrio entre inovação e humanidade

Como Chief AI Officer envolvido diariamente em estratégia digital, minha recomendação é simples e direta: abrace a inovação, mas com espírito crítico e senso de responsabilidade redobrado. Se a sua organização pretende alavancar IA para gerar conteúdo ou tomar decisões, estabeleça freios e contrapesos.

Exija atribuição de fontes em qualquer relatório gerado por IA (não aceite um resultado que você não sabe de onde veio). Cultive dentro da empresa a cultura do ver para crer: inspeção humana constante nos outputs da máquina. Lembre que velocidade sem direção pode levar ao precipício mais rápido.

O futuro da Wikipedia, e do conteúdo digital confiável, não será definido por robôs que escrevem sozinhos, mas por pessoas capazes de dialogar com esses robôs de forma construtiva.

Para assistir a entrevista em vídeo acesso aqui.

Acompanhe tudo sobre:Inteligência artificial

Mais de Inteligência Artificial

Zuckerberg recruta mais dois nomes de peso para "supertime" de IA da Meta

Com investimento de US$ 100 bilhões em IA, Amazon prevê redução do número de empregos

Para impulsionar criatividade com IA, YouTube anuncia integração do Google Veo 3 ao Shorts

Até que a IA nos separe: o que explica a crise no casamento entre OpenAI e Microsoft