Marketing

A Seleção é mais cultura do que branding — e a Nike talvez tenha esquecido disso

Quando a gestão de marca ignora códigos culturais, até narrativas bem construídas perdem força — e o branding se fragiliza

Camisa vermelha: novo uniforme da seleção brasileira para a Copa de 2026 remonta à origem do nome "Brasil"  (Reprodução)

Camisa vermelha: novo uniforme da seleção brasileira para a Copa de 2026 remonta à origem do nome "Brasil" (Reprodução)

Publicado em 3 de maio de 2025 às 08h00.

Última atualização em 3 de maio de 2025 às 09h49.

Tudo sobreestrategias-de-marketing
Saiba mais

OPINIÃO - O consumo está inserido na cultura — e não o contrário. Ainda assim, grandes marcas, por vezes, se iludem com a ideia de que podem moldar elementos culturais por meio de ações de marketing. Tomam decisões baseadas em dados, mas sem considerar o contexto em que estão inseridas. Foi o que parece ter ocorrido com a Nike e a suposta nova camisa vermelha da Seleção Brasileira.

Menos de 24 horas após o site inglês Footy Headlines divulgar que o uniforme reserva da equipe para a Copa do Mundo de 2026 seria possivelmente produzido pela marca Jordan, em vez da própria Nike, e traria a cor vermelha — em vez de verde, amarelo, azul e branco —, o tema ganhou grande repercussão nas redes sociais.

Segundo levantamento da empresa Stilingue, mais de 90% das menções foram negativas. Horas depois, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) afirmou que as imagens divulgadas não são oficiais e que o estatuto da entidade não permite o uso de uniformes com cores fora da paleta da bandeira brasileira. A CBF também informou que a definição dos novos uniformes ainda está em discussão com a patrocinadora.

Do ponto de vista mercadológico, a ideia parecia promissora. Em 2014, a Adidas lançou um uniforme rubro-negro para a Alemanha e um modelo completamente preto para a então campeã mundial Espanha. Ambos venderam bem. Em 2018, foi a vez da Nigéria: a Nike apostou em uma camisa verde-limão, branca e preta, que virou febre global, especialmente entre o público jovem. No ano passado, a seleção alemã foi ainda mais ousada e jogou com um uniforme rosa e azul escuro. A polêmica foi grande, mas as vendas estouraram. Esses casos deram à Nike o sinal verde que ela precisava para testar essa estratégia em outras seleções. Mas o que funciona no resto do mundo nem sempre se aplica na América Latina.

Na América Latina, futebol não é só esporte. É um código cultural. É identidade coletiva. É expressão de pertencimento. Um exemplo disso está na experiência vivida pelo ator americano Matt Damon. Em visita à Argentina com a família de sua esposa, ele pediu para assistir a um clássico Boca Juniors vs. River Plate. O tio da esposa deu o sinal verde, mas avisou: “sem mulheres e sem crianças”. Damon não entendeu. Mas, ao chegar, se deparou com três barreiras policiais, arame farpado e tropas de choque. Os melhores lugares estavam vazios, pois eram considerados zona de risco de objetos arremessados entre as torcidas. E, depois do final da partida, teve que ficar no estádio por mais 45 minutos, até os adversários irem embora. Ele descreveu como “a coisa mais louca que já vi”. Isso não é apenas entretenimento. Isso é paixão. Isso é cultura.

A falta de entendimento dessa paixão é o que falta na análise puramente mercadológica inicial. O envolvimento do brasileiro com futebol é notório. Por isso temos continuamente tantos problemas com violência nos estádios e fora deles, em função de brigas entre torcidas rivais. Mas, nessa disputa agressiva entre os times, existe uma unanimidade: a seleção brasileira. Desde os anos 1960, o país para para assistir à sua seleção e, independentemente do time de preferência, se encontram harmoniosamente para torcer pela “canarinho”.

O nosso envolvimento com a seleção brasileira foi o que levou as pessoas que participaram dos protestos de 2013 a usarem a camisa. A ideia dos manifestantes era expressar um descontentamento tão grande que fosse unânime. Por isso, não estavam usando as camisas dos seus times de preferência, mas sim algo coletivo para a cultura brasileira: a seleção brasileira de futebol. Mas é claro que o descontentamento não era unânime, e por isso a camisa da seleção brasileira ganhou perspectivas políticas e se tornou polarizada. E, enquanto a seleção em si continua recebendo o suporte das pessoas, mesmo com a atual situação em que ela se encontra, a camisa amarela parou de ser unânime. É por isso que muitos, hoje em dia, decidem não usá-la, mas se sentem seguros em ter a opção azul — que mostra que torcem pela seleção, mas não se alinham aos interesses políticos do grupo que utiliza a camisa amarela.

O interessante é que a Nike já teve enorme sucesso justamente por respeitar e entender aspectos culturais. Douglas Holt — um antropólogo renomado que estuda marcas e cultura — descreve em seus estudos que o sucesso da Nike com Jordan não se deveu apenas ao uso de um ídolo do esporte como garoto-propaganda, mas à capacidade da marca de capturar e amplificar uma narrativa cultural poderosa.

Jordan encarnava valores profundamente enraizados na cultura americana nos anos 1990, com elementos caros especialmente aos jovens negros americanos: a superação pessoal das barreiras sociais impostas, o orgulho racial e o individualismo heroico. A Nike não criou essa narrativa; ela a reconheceu nos significados simbólicos que já circulavam em torno de Jordan e ajudou a amplificá-la com coerência.

Segundo Holt, esse é o papel central de uma marca icônica: atuar como plataforma de expressão para tensões culturais latentes, oferecendo ao consumidor uma forma de se identificar com histórias maiores do que o próprio produto.

Jordan virou lenda porque representava um imaginário coletivo. E a Nike tornou-se icônica porque soube canalizar essa energia simbólica, respeitando os códigos culturais daqueles que viviam essa realidade. É exatamente essa inteligência cultural que parece faltar no caso atual.

Dá para entender a razão de as supostas camisas “vazadas” na internet serem vermelhas e mostrarem o logo de Michael Jordan, em vez do da Nike. Pode simbolizar algo muito interessante — a comparação, no futebol, ao maior jogador da basquete de todos os tempos, nas cores de um dos melhores times que já existiu na NBA: o Chicago Bulls de Michael Jordan e Scottie Pippen. Isso pode ser visto como uma homenagem à seleção brasileira, e não é uma história ruim. E ela ainda pode endereçar aquele monte de argumentos mercadológicos que citei. Mas esqueceu-se de combinar com a cultura brasileira.

Branding não se faz apenas com dados e histórias bem contadas. Se faz com compreensão profunda de contexto.

E isso inclui o entendimento de que a camisa da Seleção Brasileira não é apenas parte de um uniforme. Ela é parte de uma identidade nacional compartilhada. A Nike precisa entender que, quando se trata do Brasil, não está vendendo apenas uma peça de roupa. Está mexendo com o que o brasileiro tem de mais profundo: uma paixão coletiva.

A repercussão da suposta camisa vermelha foi um sintoma claro de que a empresa falhou em antecipar a resposta cultural à sua proposta. A rejeição foi imediata e quase unânime entre torcedores, jornalistas esportivos e comentaristas. Até o senador Randolfe Rodrigues, líder do governo e notoriamente à esquerda do espectro político, declarou: “Qualquer cor diferente do verde, amarelo, branco e azul não se justifica. Além do mais, a essa altura, temos preocupações bem maiores com a seleção, como, por exemplo, garantir uma boa classificação para a Copa de 2026."

O que está presente na rejeição e nas declarações contrárias é a percepção de que a mudança foi uma tentativa artificial de impor uma narrativa sem sintonia com o que a camisa da seleção representa para os brasileiros. Em um país onde o futebol é vivido como expressão coletiva de identidade, uma mudança de cor dessa magnitude foi vista por muitos como uma afronta simbólica. Os torcedores não rejeitaram apenas o vermelho — rejeitaram a falta de sensibilidade com a cultura local. E quando a cultura rejeita, não há storytelling que salve.

  • O texto não reflete, necessariamente, a opinião da EXAME
Acompanhe tudo sobre:NikeSeleção Brasileira de Futebolestrategias-de-marketingBranding

Mais de Marketing

Encantamento: a nova estratégia de diferenciação competitiva das marcas

Boca Rosa: 'Humanizar a marca é o que faz minha comunidade continuar crescendo'

Como as marcas podem navegar no dilema dos algoritmos nas redes sociais

31 anos sem Ayrton Senna: Racing Day leva corrida e homenagens a Interlagos