Encontro em Malanje reuniu lideranças comunitárias, autoridades locais e formadores do Projeto Pascal para a apresentação do 'Manual de Jornalismo Cidadão', iniciativa apoiada pela União Europeia
Estrategista de Comunicação
Publicado em 4 de setembro de 2025 às 10h39.
Última atualização em 4 de setembro de 2025 às 10h42.
Escrevo esta coluna de Luanda, capital de Angola, no meu sexto dia aqui. Integro, pela terceira vez em doze meses, o Projeto de Apoio à Sociedade Civil e à Administração Local em Angola (Pascal), cujo objetivo é contribuir para uma sociedade mais inclusiva na governação participativa, focada em grupos sub-representados, como mulheres, jovens e pessoas com diversidade funcional.
Dirigido por Pablo López, o projeto é totalmente financiado pela União Europeia e já formou 12.000 pessoas em todo o território, entre jornalistas, comunicadores e líderes sociais. Desse total, mais de 400 profissionais foram capacitados diretamente nos encontros que co-conduzi com meu líder direto no Pascal, Nelson Rodrigues, sempre com o objetivo de estimular narrativas locais, éticas e consistentes.
Desta vez, a missão me levou a Luanda e a Malanje, no norte do país, acompanhado do jurista e jornalista Cândido Teixeira, para apresentarmos o “Manual de Jornalismo Cidadão”, que elaboramos sob supervisão do Pascal.
O material nasceu da prática de campo e organiza aquilo que já acontece nas comunidades: como escolher pautas relevantes, realizar entrevistas respeitosas, estruturar reportagens, aplicar storytelling, verificar informações, agir com ética, cuidar da segurança e comunicar com clareza.
O manual não substitui o jornalismo profissional, mas o complementa, pois é um convite para que comunidades falem em primeira pessoa, sem intermediários, e sejam ouvidas por quem decide.
A agenda em Angola tem sido intensa. Tivemos encontros com autoridades, diálogos com lideranças locais e espaço para a cultura, com apresentações de grupos de teatro, dança e música que mostram o quanto a ancestralidade é presença viva no cotidiano angolano. Houve ainda uma cerimônia pública em Malanje, no norte, reunindo representantes do governo provincial, como o vice-governador Franco Mufinda, lideranças comunitárias e formadores do Pascal.
Entre uma mesa e outra, pus em prática o superpoder da prática jornalística e da comunicação: escutar ativamente. Estive em mercados populares, caminhei por ruas movimentadas, conversei com professores, comerciantes, jovens empreendedores e cidadãos comuns. Observei como vivem, o que e como consomem, quais são suas dores e suas esperanças.
Cada gesto, cada palavra, cada detalhe mostrava o quanto o jornalismo administrativo, centrado em discursos oficiais e agendas de governo, deixa lacunas – e como essas lacunas vêm sendo preenchidas pelo jornalismo cidadão, que emerge como contraponto e complemento, trazendo à superfície vozes invisíveis.
Segundo o Digital 2025 Angola (DataReportal), 17,2 milhões de angolanos têm acesso à Internet, o que representa 44,8% da população. Ou seja, mais da metade do país segue desconectada, sobretudo em áreas rurais. Em termos práticos, significa que milhões ainda dependem da oralidade, do rádio comunitário, de jornais caseiros e de panfletos artesanais para acessar informação.
Uma limitação concreta e também um campo fértil para a inovação.
Nesse vazio floresce a comunicação comunitária: webrádios, portais, jornais feitos em gráficas de bairro, TVs digitais, cartazes colados em muros, carros de som que cruzam cidades com mensagens de utilidade pública. Em algumas regiões, até pendrives cumprem papel de jornais digitais, carregando áudios, vídeos e textos que circulam de computador em computador.
Essa engenhosidade mostra que não há ausência de comunicação. Pelo contrário, existem múltiplas formas de reinventá-la.
Entre os dias de formação, vivi um movimento simbólico: a viagem de carro de Luanda até Malanje, passando por N’dalatando, no Cuanza Norte. Foram quase oito horas de estrada. O trajeto começa na capital, ainda com resquícios de urbanização densa e tráfego intenso. Pouco a pouco, a paisagem se abre em campos agrícolas, plantações de milho e mandioca, povoados pequenos que se anunciam em letreiros artesanais.
Em N’dalatando, a capital provincial, o ritmo é outro: ruas largas, mercados cheios, bancas de frutas tropicais coloridas, um comércio que funciona como ponto de abastecimento para todo o norte.
Dali em diante, a estrada muda de tom: é longa, irregular, marcada por buracos, curvas e poeira vermelha. Palmeiras verdes e baobás solitários se erguem como colunas da memória ancestral. Crianças correm descalças à beira da pista, vilarejos exibem murais pintados à mão, caminhões carregados e os “kupapatas”, espécie de moto-táxi com caçambas apinhadas de gente ao ar livre, avançam irrompendo a poeira.
Cada quilômetro é também um mergulho em camadas da história angolana: guerras, reconstruções, resistências.
Chegar a Malanje é abrir uma nova página. A cidade é vibrante e calorosa, marcada por contrastes: carros antigos disputam espaço com táxis (vans azuis e brancas) e mototáxis velozes; mercados fervilham em cores, cheiros e sons; a culinária revela identidade, do funge de milho à moamba, dos pratos de peixe fresco vendidos em tabuleiros de rua à generosidade de quem oferece sempre mais do que se espera.
Malanje é também território de memória. É ali que ressoa a figura de Njinga Mbande, maior nome de Angola, rainha do Ndongo e de Matamba, que no século XVII liderou batalhas contra o colonialismo português e se tornou ícone de astúcia, coragem e diplomacia. O legado da rainha Njinga ecoa em monumentos, na oralidade e na autoestima da população.
A história não é distante: segue sendo referência cotidiana de resistência e inspiração para mulheres e homens que buscam protagonismo.
Nas oficinas que conduzi em Malanje, vi jovens transformando celulares simples em redações móveis, professores que carregam material de casa para não interromper aulas, radialistas comunitários que se mantêm no ar sem qualquer patrocínio. Com o professor Cândido Teixeira e Nelson Rodrigues, realizei um debate sobre fake news, segurança digital e ouso de aplicativos de inteligência artificial em celulares básicos.
Essas práticas mostram que comunicar, em Angola, é resistir, pertencer, se reconhecer como parte de uma comunidade que tem voz. Vai além de informar. O jornalismo cidadão é a infraestrutura invisível de cidadania porque aproxima governo e sociedade, amplia a participação democrática e devolve dignidade a vozes que, de outro modo, ficariam silenciadas.
Volto para o Brasil carregando a poeira vermelha da estrada, o silêncio altivo dos baobás e os rostos dos jovens que narram suas próprias realidades.
Cada voz de Angola é uma peça essencial no futuro do país e um lembrete poderoso de que a comunicação só cumpre seu papel quando nasce de onde a vida acontece.