Mundo

China e Europa oferecem dinheiro e estabilidade a pesquisadores afetados por cerco de Trump

Com cortes no orçamento e restrições a vistos, universidades americanas perdem força na disputa por talentos, impactando sobretudo áreas críticas, como engenharia e ciência da computação

Estudantes de Harvard protestaram na terça-feira após o governo dos EUA anunciar a intenção de cancelar todos os contratos financeiros restantes com a universidade (AFP)

Estudantes de Harvard protestaram na terça-feira após o governo dos EUA anunciar a intenção de cancelar todos os contratos financeiros restantes com a universidade (AFP)

Agência o Globo
Agência o Globo

Agência de notícias

Publicado em 4 de junho de 2025 às 08h27.

A história de Ardem Patapoutian não é apenas o sonho americano — é o sonho da ciência americana.

Ele chegou em Los Angeles em 1986, aos 18 anos, fugindo da guerra no Líbano. Passou um ano escrevendo para um jornal armênio e entregando pizzas à noite para conseguir ingressar na Universidade da Califórnia, onde concluiu a graduação e um pós-doutorado em neurociência.

Com uma bolsa dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), fundou um laboratório na Scripps Research, em San Diego, onde descobriu como os humanos percebem o tato — e ganhou o Prêmio Nobel por isso em 2021.

Os desafios enfrentados por Patapoutian

No entanto, com o governo do presidente americano Donald Trump cortando os investimentos em ciência, a bolsa federal que financiava sua pesquisa sobre novos tratamentos para dor foi congelada. Em fevereiro, Patapoutian postou no Bluesky que os cortes ameaçam a pesquisa biomédica e podem provocar uma fuga de cérebros dos Estados Unidos. Horas depois, recebeu um e-mail da China: uma oferta para transferir seu laboratório para qualquer universidade ou cidade do país, com financiamento garantido por 20 anos.

Ele recusou, por amor aos EUA. Mas muitos jovens cientistas dizem não ver alternativa a não ser ir embora. Líderes acadêmicos alertam que a postura de Trump coloca em risco o modelo que consolidou os EUA como referência mundial em ciência.

O impacto das políticas de Trump na ciência

Europa e China ampliam contratações. Segundo a revista Nature, candidaturas de chineses e europeus para pós-graduação e pós-doutorado nos EUA caíram drasticamente desde que Trump chegou ao poder. Ao mesmo tempo, aumentaram os pedidos de americanos buscando vagas no exterior.

Na França, uma universidade precisou encerrar inscrições para novas vagas criadas para pesquisadores afetados pelos cortes nos EUA, tamanha a procura. Em Portugal, um instituto registrou aumento de dez vezes nas consultas de professores dos EUA interessados em migrar.

— Estamos embarcando num grande experimento de reestruturação da ciência americana e a China está no controle — diz Marcia McNutt, geofísica e presidente da Academia Nacional de Ciências, criada por Abraham Lincoln para aconselhar o governo. — A China não vai cortar seu orçamento de pesquisa pela metade.

O sistema de ciência dos EUA sob ameaça

Desde os anos 1950, com a expansão do NIH e a criação da Fundação Nacional de Ciência, os EUA se tornaram o centro global da pesquisa científica. O modelo, concebido por Vannevar Bush, conselheiro de Roosevelt (1933-1945), previa investimentos federais para alavancar descobertas científicas e manter as universidades americanas na vanguarda.

Esse sistema atraiu milhares de cientistas do mundo todo, que ocupam posições cruciais nas universidades e indústrias dos EUA. Nas áreas de engenharia, ciência da computação e biotecnologia, metade dos doutores são estrangeiros.

Agora, esse sistema está sob ataque. O governo Trump cortou orçamentos, restringiu vistos, ameaçou universidades e agências de saúde pública, inclusive como retaliação pela atuação na pandemia de Covid-19.

O impacto das políticas de imigração e cortes orçamentários

Políticas imigratórias mais rígidas espalharam medo entre pesquisadores internacionais. Alunos de pós-graduação e pós-docs tiveram vistos cancelados ou vivem com medo de não conseguir renová-los. Harvard chegou a ser proibida de matricular estudantes estrangeiros — a medida foi revertida por um juiz, mas o precedente assusta outras universidades.

O secretário de Estado Marco Rubio prometeu revogar agressivamente vistos de estudantes chineses em “áreas críticas” — um alvo claro para laboratórios em que a maioria dos pesquisadores é estrangeira.

O impacto da crise no futuro da ciência nos EUA

Para Patapoutian, esse cenário é “um presente” para a China.

— Não é só uma questão dos estudantes estrangeiros. O sistema inteiro está paralisado pela incerteza. Com tantas bolsas congeladas, vivemos um caos.

Metade dos pesquisadores do laboratório de Patapoutian vem do exterior. Hoje, o interesse internacional caiu e, como outros cientistas, ele sequer está contratando novos pós-docs.

— Estamos focados em manter os que já temos.

No passado, cientistas americanos iam à Europa fazer grandes descobertas. Depois da Segunda Guerra, os EUA trouxeram cientistas alemães, incluindo os responsáveis pela corrida espacial. Agora, com estabilidade em outros países, jovens pesquisadores preferem construir carreiras fora dos EUA.

— Eles vão recrutar os melhores talentos, sem questionar — diz McNutt. — Vão dar laboratórios, equipamentos e verbas.

A ameaça à liderança científica dos EUA

Na Universidade Johns Hopkins, líder em verbas do NIH, o diretor de neurociência Richard Huganir diz estar “apavorado” com a possibilidade de perder estudantes estrangeiros. Das 36 equipes de pesquisa da sua divisão, 30% dos pós-docs e doutorandos são internacionais.

— Perder 30% da força de trabalho seria devastador. Eles são parte fundamental da ciência americana.

Muitos estão voltando para a China ou Coreia do Sul. Huganir teme que os EUA também se isolem academicamente. Ele cancelou uma conferência internacional porque cientistas estrangeiros não queriam vir aos EUA. Cogitou transferi-la para Oxford, no Reino Unido, mas estudantes internacionais baseados nos EUA recusaram, com medo de não conseguir reingressar no país.

Para agravar, Robert Kennedy Jr., principal autoridade federal de saúde, declarou esta semana que quer proibir cientistas de agências como NIH de publicarem em revistas científicas de prestígio, que ele chamou de “corruptas”.

Daphne Koller, que saiu de Israel para fazer doutorado em Stanford e fundou empresas como Coursera e Insitro, afirma que quase todos os primeiros contratados em suas startups eram estrangeiros, saídos diretamente das universidades americanas.

— Seria ótimo se os EUA investissem em rigor e formação em ciência para formar talentos locais. Mas isso não acontece por mágica. E enquanto não acontece, é um privilégio ser o país que atrai os melhores do mundo.

Acompanhe tudo sobre:Faculdades e universidadesDonald TrumpImigraçãoChinaEuropa

Mais de Mundo

Tarifas dos EUA disparam déficit comercial do Canadá para nível recorde em abril

Musk diz que Trump teria perdido as eleições sem ele e acusa presidente de 'ingratidão'

Terremoto de magnitude 3,2 atinge sul da Itália e danifica parte do sítio arqueológico de Pompeia

Trump diz que conversa com Xi produziu 'conclusão muito positiva'