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'Ciclo do socialismo na Bolívia chegou ao fim', diz ex-vice-chanceler do país

Victor Rico aponta que queda de exportação de gás deixou país sem recursos para custear modelo em vigor desde 2005

O ex-presidente boliviano Evo Morales, impedido de disputar as eleições por exceder número de mandatos (AFP)

O ex-presidente boliviano Evo Morales, impedido de disputar as eleições por exceder número de mandatos (AFP)

Rafael Balago
Rafael Balago

Repórter de macroeconomia

Publicado em 16 de agosto de 2025 às 06h02.

As eleições presidenciais na Bolívia neste domingo, 17, deverão marcar o fim de um ciclo na política do país. O partido MAS (Movimento ao Socialismo), do ex-presidente Evo Morales, foi protagonista e comandou o país por 19 dos últimos 20 anos. No entanto, o partido chega fraco para a disputa, e deve ficar fora do segundo turno.

As pesquisas eleitorais mostram que nomes de centro e centro-direita lideram a disputa, como o ex-presidente Jorge Quiroga e o empresário Samuel Medina. O candidato do governo, o ministro Eduardo del Castillo, aparece em quarto lugar.

A queda do MAS ocorre em meio a uma briga entre Morales e o atual presidente, Luis Arce. Com alta rejeição, Arce desistiu de disputar a reeleição. Ao mesmo tempo, o país enfrenta uma forte crise econômica, marcada pela falta de dólares e de combustíveis.

“Estamos com nível de inflação que a Bolívia não via há 40 anos. No mês passado, tivemos uma inflação de mais de 5%. Há escassez de moeda estrangeira. Não há dólares no mercado para consumidores e importadores. Há escassez de combustível. Há longas filas em todas as cidades do país para abastecer, seja gasolina ou diesel, que é o combustível usado no transporte público”, diz Victor Rico, ex-vice-chanceler da Bolívia.

Rico avalia que o fim do ciclo político tem relação também com uma mudança econômica: a queda na exploração de gás. “A receita [do gás} financiava a criação de entidades públicas e maiores gastos do Estado. Tínhamos reservas de US$ 15.bilhões. Hoje, as reservas estão muito baixas, porque não exportamos mais gás para a Argentina e as exportações de gás para o Brasil diminuíram. Esse modelo era financiado principalmente com a receita gerada pelas exportações de gás”.

Rico foi secretário-geral do Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF) e diretor da entidade no Brasil. Também foi secretário de Assuntos Políticos na Organização dos Estados Americanos (OEA). Hoje, atua como consultor.

Leia a seguir a íntegra da entrevista.

Como avalia as chances da oposição nesta eleição?

Dentro da oposição democrática, do ponto de vista político e ideológico, existem candidatos de centro e centro-direita. Na realidade, na Bolívia, não existe uma direita pura ou extrema-direita, como pode ser o caso em outros países, como o Chile.

Todas as pesquisas publicadas até agora, e também aquelas que não são públicas, mostram que os candidatos da oposição que não fazem parte do bloco que poderíamos chamar de MAS [Movimento ao Socialismo, partido do presidente atual, Luis Arce, e do ex-presidente Evo Morales] estão liderando as pesquisas. Isso reflete duas coisas. Uma é que estamos diante do fim de um ciclo político que começou com a vitória de Morales em 2005. O segundo elemento que caracterizará o próximo ciclo político, que começaria este ano, é que há uma fragmentação dentro do sistema político. Na representação parlamentar que o próximo Congresso boliviano terá, eu diria, três partidos principais e provavelmente dois minoritários. Em dois casos, cinco ou seis partidos estarão representados no Congresso. Isso não acontecia antes.

No ciclo político iniciado em 2005, tínhamos um partido que buscava ser hegemônico na tentativa de estabelecer o socialismo. Na oposição, em geral, havia apenas um candidato forte que não ultrapassava 30%, exceto na eleição de 2019, quando houve essa interrupção na contagem eleitoral, que mostrou que haveria um segundo turno entre Evo Morales e Carlos Mesa. Com exceção daquele ano, a oposição não ultrapassou 30% dos votos. O movimento socialista, durante a maior parte dos seus 20 anos, teve representação de dois terços no Congresso.

Jorge "Tuto" Quiroga, candidato à presidente da Bolívia, durante comício (Martin Bernetti/AFP)

Essa fragmentação tornará mais difícil para o próximo presidente fazer mudanças mais profundas?

Depende de como essa representação fragmentada acabará, porque parece que não haverá um vencedor que tenha votos suficientes. É muito provável que haja um segundo turno, em outubro. A representação parlamentar se define agora, no primeiro turno, e o candidato que avançar para o segundo turno e vencer naturalmente terá que formar alianças com os outros partidos no Congresso para ter maioria e governabilidade parlamentar suficiente para implementar as medidas e reformas que o país precisa para superar a atual crise econômica. Então, o mais provável é que se forme um governo de coalizão.

A economia é a questão principal nesta eleição. Quais são as principais propostas que os candidatos estão apresentando nesta disputa?

Estamos vivendo uma crise econômica muito, muito grave, que se expressa em um nível de inflação que a Bolívia não via há 40 anos, desde a hiperinflação dos anos 1980. No mês passado, tivemos uma inflação de mais de 5%. Há escassez de moeda estrangeira. Não há dólares no mercado para consumidores e importadores. Há escassez de combustível. Há longas filas em todas as cidades do país para abastecer, seja gasolina ou diesel, que é o combustível usado no transporte público.

Esse é o principal fator nesta eleição, e o candidato que conseguir ter uma proposta, um discurso e uma narrativa suficientemente convincente para o eleitorado acabará vencendo a eleição. Se você olhar não apenas para os candidatos da oposição, mas mesmo para os candidatos que expressam o que era a opção política do movimento socialista, todos eles estão levantando questões que levam a uma mudança no modelo econômico. Alguns com maior profundidade, outros com menos. E isso se expressa principalmente em uma mudança no papel do Estado na economia. Todos propõem um papel maior para o mercado e o setor privado na economia, uma maior abertura da economia ao investimento estrangeiro e a promoção das exportações. Todos propõem um papel menor para o Estado e um papel maior para o mercado e o setor privado.

O senhor acha possível fazer esta mudança? Quão viável ela é?

A viabilidade política e social disso vai depender do nível de governabilidade do próximo governo e da sua capacidade de negociação política, mas a mudança é necessária. Este modelo que prevaleceu nos últimos 20 anos está esgotado. É um modelo com um papel forte para o Estado e financiado principalmente pela receita gerada pelas exportações de gás para o Brasil e a Argentina. Tudo fazia parte do contexto do superciclo global das commodities. Essa receita, que era grande, poderia financiar a criação de entidades públicas e maiores gastos do Estado. Estima-se que haja 600.000 funcionários públicos na Bolívia, um número muito, muito alto para um país com uma economia como a da Bolívia. Tínhamos reservas de US$ 15.bilhões. Hoje, as reservas estão muito baixas, porque não exportamos mais gás para a Argentina e as exportações de gás para o Brasil diminuíram. Esse modelo era financiado principalmente com a receita gerada pelas exportações de gás.

A Bolívia poderia avançar na exploração de lítio, um mineral com alta demanda atualmente?

Isso também é parte do legado que este ciclo político deixará para trás, porque a Bolívia tem as maiores reservas de lítio do mundo e pertence ao que é chamado de triângulo do lítio, com Argentina e Chile. No entanto, todas as tentativas de desenvolver exportações de lítio falharam. Houve muito investimento, mas todas as opções consideradas se mostraram financeira e tecnologicamente inviáveis. Então, hoje exportamos quantidades muito pequenas de carbonato de lítio e há muita frustração, especialmente entre a população de Potosí, que é o departamento onde está localizada a unidade de Yuni.

Porém, embora isso seja uma expectativa na Bolívia, a exploração de lítio, em nenhum caso será um setor que substitua as enormes divisas e receitas financeiras geradas pelas exportações de gás. O preço do lítio caiu internacionalmente. Hoje, a tonelada está em US$ 10.000. Três ou quatro anos atrás, estava em US$ 30.000. O próximo governo terá que definir qual será o modelo tecnológico e financeiro mais adequado para o país desenvolver esses depósitos de lítio, mas reitero que isso não substituirá de forma alguma a enorme receita gerada pelas exportações de gás.

Como estão as reservas de gás?

Este é outro legado que será deixado para este século: o esgotamento dos poços de gás que foram desenvolvidos há 30, 40 anos. Não houve nenhuma nova prospecção e exploração de poços de gás e hidrocarbonetos líquidos.

Portanto, a política de hidrocarbonetos também terá que ser redefinida, assim como a política de atração de investimentos para que possamos voltar a ter produção de gás suficiente, não apenas para as exportações, porque o que está em risco agora devido à queda na produção de gás é o abastecimento do mercado interno, e isso é algo que começará a ser sentido a partir de 2027.

Se medidas imediatas não forem tomadas para lidar com essa escassez de gás que ocorrerá nos próximos dois anos, teremos sérios problemas para abastecer não apenas o setor industrial boliviano, mas também as residências bolivianas que usam gás para cozinhar, aquecimento etc.

Há algum outro produto que poderia substituir o gás como grande commodity de exportação?

Um setor que pode gerar uma fonte de divisas relativamente rápida é o setor agroindustrial de Santa Cruz, certo? Da exportação de carne ovina e carne. Há também os setores de turismo e mineração. A Bolívia continua sendo um país minerador. Nos últimos anos, a mineração de ouro se desenvolveu. Tem um nível de informalidade muito alto, mas gerou uma divisa significativa nos últimos anos. Então, precisamos ver como isso se organiza para que essa exportação de ouro possa ser canalizada formalmente.

Há um setor muito, muito ativo socialmente e, em alguns casos, muito beligerante, que é o das cooperativas de mineração. São elas que exploram o ouro, principalmente no norte do departamento de La Paz. Elas produzem quantidades significativas de ouro., mas pagam impostos muito baixos ou quase nenhum em alguns casos, e não estão canalizando a divisa que geram para o setor formal.

Qual será o papel de Evo Morales nessa eleição?

O papel que ele está desempenhando no processo eleitoral é o de questionar e, em alguns casos, confrontar o processo eleitoral. Ele não pode ser candidato à Presidência porque há uma decisão constitucional que diz que ninguém pode ser presidente por mais de dois mandatos, sejam contínuos ou descontínuos. E também houve um referendo, em 2016, que, na minha opinião, foi o começo da crise política que a Bolívia atravessa desde então, que esperamos que seja resolvida com as eleições de agosto.

Naquele referendo, por iniciativa do ex-presidente Morales, a população boliviana foi questionada se concordava com a mudança da Constituição para permitir a reeleição por tempo indeterminado. O ex-presidente perdeu aquele referendo, e daí surgiu uma crise política que até hoje não foi definitivamente resolvida. Reitero, espero que seja resolvida neste ano.

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