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De ‘tratamento preferencial’ à tarifa mais alta: a reviravolta de Trump contra a Suíça

Após negociações que prometiam acordo com Washington, a Suíça recebeu uma das tarifas mais alta do mundo desenvolvido, de 39%

Agência o Globo
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Publicado em 10 de agosto de 2025 às 14h15.

Em 4 de julho, enquanto os Estados Unidos celebravam o Dia da Independência, o círculo mais alto de ministros da Suíça também tinha motivos para comemorar. Eles haviam garantido um acordo para evitar tarifas punitivas de Donald Trump — ou pelo menos assim pensavam.

Três semanas e meia se passaram antes que a presidente suíça, Karin Keller-Sutter, ou qualquer outro membro do gabinete percebesse que as coisas estavam prestes a dar muito errado. Quando Trump anunciou seu veredito tarifário, a Suíça recebeu as taxas mais altas do mundo desenvolvido.

O choque veio apenas algumas horas antes do próprio feriado nacional do país, em 1º de agosto, levando Keller-Sutter a fazer uma viagem de última hora a Washington para tentar salvar a situação. Em vez disso, ela foi ignorada pela Casa Branca.

"Em 4 de julho, se bem me lembro, não havia sinais de que haveria um problema", disse o vice-presidente Guy Parmelin na quinta-feira, no dia em que uma realidade bem diferente caiu sobre a Suíça com a imposição de tarifas de 39% — mais que o dobro da taxa da União Europeia.

O resultado desastroso evidenciou a falta de influência da Suíça em uma era de instabilidade global e o equívoco de confiar em convenções ao lidar com Trump. Isso deixa os executivos suíços tentando descobrir como competir no maior mercado do mundo e os eleitores debatendo o futuro da estratégia independente do país.

Este relato de como a Suíça passou de “na frente da fila” para fechar um acordo com os EUA a um pesadelo econômico é baseado em conversas com várias pessoas em Berna, Zurique e Washington, que pediram anonimato ao descrever discussões privadas.

O governo suíço se recusou a comentar os detalhes das negociações. A Casa Branca e o Departamento de Comércio não responderam imediatamente aos pedidos de comentário, e o Departamento do Tesouro se recusou a se manifestar.

Fase 1: Esperança

Em 24 de abril, três semanas depois de Trump anunciar suas tarifas abrangentes ao mundo, Parmelin e Keller-Sutter se reuniram com o secretário do Tesouro dos EUA, Scott Bessent, em Washington. Depois do encontro, ela anunciou que a Suíça receberia “um tratamento um tanto preferencial”.

Nesse momento, os suíços acreditavam estar em terreno seguro com o presidente norte-americano, devido ao pequeno tamanho de sua economia e ao fato de terem abolido tarifas industriais.

A Suíça poderia oferecer a Trump uma vitória rápida, disse na época um assessor do lado suíço. E, com Bessent e outros, o presidente — muitas vezes volúvel — estava cercado de pessoas que entendiam que o país não representava um problema.

O plano suíço incluía concessões em alguns produtos agrícolas e aprovações mais fáceis para dispositivos médicos dos EUA. Também destacavam os investimentos bilionários que as gigantes farmacêuticas nacionais Roche Holding AG e Novartis AG haviam prometido.

Em troca, buscavam uma tarifa de 10% e a promessa de que Trump não imporia taxas punitivas sobre medicamentos em suas investigações de segurança nacional.

Fase 2: Procedimento

Em maio e junho, o gabinete do Representante de Comércio dos EUA, Jamieson Greer, realizou mais de 20 rodadas de negociações com os suíços. As conversas ocorreram frequentemente por videochamadas e, às vezes, até pelo WhatsApp.

Bessent estava incluído nas discussões e, em 23 de junho, Keller-Sutter teve uma ligação com ele, na qual disse que estavam próximos de um acordo.

Poucos dias depois, surgiu um rascunho. Ele continha uma cláusula segundo a qual os fabricantes suíços de medicamentos não buscariam mais obter certos ingredientes da China.

Há diferentes versões sobre o que aconteceu a seguir. Algumas pessoas disseram que Bessent, Greer e o secretário de Comércio, Howard Lutnick, sinalizaram aos negociadores suíços que apoiariam o acordo diante do presidente.

Outros afirmaram que os funcionários norte-americanos deixaram claro a seus homólogos suíços que apenas informariam o presidente sobre os pontos positivos e negativos de um possível acordo, mas que a decisão final caberia exclusivamente a Trump.

A ideia de que havia um acordo concluído e que os secretários do gabinete dos EUA o levaram a Trump é incorreta, disse uma das fontes.

Em Berna, Keller-Sutter e seus colegas ministros ainda não tinham ouvido diretamente de Trump. Mas decidiram confiar na palavra de seus ministros e deram a aprovação formal no Dia da Independência dos EUA.

Fase 3: Catástrofe

Keller-Sutter afirma que, no fim de julho, o gabinete de Greer disse aos negociadores suíços que seria útil se ela solicitasse uma ligação com o presidente dos EUA. Ela o fez.

Uma pessoa familiarizada com o assunto disse que os suíços decidiram, por conta própria, ligar para Trump. A conversa que mudou tudo para os suíços começou às 14h (horário de Washington) em 31 de julho.

Depois de oferecer congratulações pelo feriado nacional da Suíça no dia seguinte, Trump fez a Keller-Sutter uma acusação: seu país estava roubando dos EUA, disse ele, apontando para um déficit comercial que arredondou para US$ 40 bilhões.

Os suíços foram pegos de surpresa, pois o saldo comercial bilateral não havia surgido nas conversas anteriores. Eles estavam confiantes de que já haviam neutralizado a questão ao observar que o déficit em bens era quase totalmente compensado pelas importações de serviços. Também destacaram que o país era o sétimo maior investidor estrangeiro nos EUA.

Ao telefone, a presidente suíça — uma política estoica, não inclinada a gestos dramáticos ou frases de efeito — adotou a posição de que a Suíça mantém sua palavra e o rascunho do acordo previamente negociado. Se houvesse discordância, preferia nenhum acordo a um mau acordo.

Duas narrativas diferentes da ligação surgiram. Uma retrata Keller-Sutter dando uma palestra para Trump e atrapalhando o encontro. A outra sugere que tudo foi encenação e que Trump já tinha decidido atacar a Suíça antes mesmo de atender o telefone.

Keller-Sutter não é do tipo que opta por pompa e bajulação, como o secretário-geral da OTAN, Mark Rutte, que fez isso para conquistar o líder dos EUA.

“Não faremos promessas que não podemos cumprir”, disse Keller-Sutter aos repórteres quando questionada se deveria ter seguido esse estilo de negociação.

Mas Trump também pode ter querido dar um exemplo à Suíça depois de enfrentar críticas por ceder nas tarifas, especialmente contra países grandes como a China.

“A mulher foi simpática, mas não quis ouvir”, Trump disse depois à CNBC.

Fase 4: Desespero

No dia 1º de agosto, Keller-Sutter tentou mostrar coragem. Falando no prado Rütli — um campo com vista para o Lago de Lucerna onde, segundo a lenda, os pais fundadores da Suíça juraram proteger uns aos outros contra poderes estrangeiros — ela disse que o país pode lidar com a crise.

“A Suíça está acostumada a tempestades”, disse Keller-Sutter para a multidão. “Não quero dar muito espaço para isso hoje — este é o nosso dia, o dia do povo suíço.”

Dado o choque, foi um pedido difícil, e os críticos rapidamente atacaram a presidente, culpando-a por não ter se juntado a outros países para dar a Trump um gesto simbólico que lhe permitisse reclamar vitória, ou pelo menos ter um Plano B.

Com apenas alguns dias antes do início das tarifas, na quinta-feira, o governo concentrou-se mais na diplomacia do que na retaliação. Negociadores buscaram contato com seus pares nos EUA com uma oferta melhorada. As opções iam desde compromissos prolongados de investimento até compras de produtos de defesa e gás natural liquefeito dos EUA.

Na terça-feira, a dois dias do prazo, Keller-Sutter fez uma viagem surpresa a Washington. Mas foi uma tentativa desesperada. Quando seu avião decolou da Base Aérea de Dübendorf, perto de Zurique, ela não tinha convite para se encontrar com Trump.

Ela voltou de mãos vazias, depois de apenas uma reunião de cortesia com o secretário de Estado Marco Rubio, que não lidera negociações de acordos comerciais. Esse foi seu único encontro oficial com o governo dos EUA.

Uma hora antes de seu avião pousar de volta na Suíça, a tarifa entrou em vigor e a tempestade começou a se desenrolar.

Empresas suíças iniciaram planos de emergência para transferir a produção para outros lugares a fim de evitar as taxas ou suspender as entregas para os EUA.

Embora o governo suíço mantenha uma delegação em Washington para buscar concessões, a fé inabalável no excepcionalismo do país agora está quebrada.

"Em negociações, essas rupturas podem acontecer", disse Keller-Sutter aos repórteres. "É preciso conviver com isso e seguir em frente".

Por Bloomberg — Berna, Zurique e Washington

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