Alemanha: parlamento vota proposta histórica de aumento de gastos para impulsionar a economia com fundo de 500 bilhões de euros em infraestrutura e segurança (AFP)
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Publicado em 18 de março de 2025 às 07h15.
Última atualização em 18 de março de 2025 às 08h26.
A câmara baixa do parlamento da Alemanha vota nesta terça-feira, 18, uma proposta que prevê um aumento histórico do endividamento do governo. Se aprovado, o plano pode impulsionar a maior economia da Europa e estimular o crescimento do país, mesmo diante de tensões comerciais com os Estados Unidos. A votação ocorre após semanas de negociações entre os conservadores e os sociais-democratas (SPD), que buscam formar uma coalizão centrista após as eleições realizadas no mês passado.
A proposta inclui a criação de um fundo de 500 bilhões de euros (US$ 546,05 bilhões) para financiar projetos de infraestrutura e a flexibilização das regras constitucionais de empréstimos, permitindo maiores investimentos em segurança.
Se a legislação for aprovada, representará uma mudança radical nas políticas fiscais da Alemanha, marcando o fim do conservadorismo fiscal que predominou no país por décadas. A medida também causou um aumento nos rendimentos da zona do euro e valorização do euro.
Os líderes do SPD e dos conservadores estão confiantes de que conseguirão atingir a maioria necessária para aprovar a reforma, que exige o apoio de dois terços do parlamento. Friedrich Merz, líder do partido conservador União Democrata-Cristã (CDU), e provável próximo chanceler, afirmou que está "confiante de que alcançaremos uma maioria de dois terços". Os três partidos principais envolvidos nas negociações — CDU, SPD e os Verdes — têm uma margem de segurança de cerca de 30 votos para garantir a aprovação da medida.
A votação está marcada para o meio-dia, após um debate matinal. Caso a proposta seja aprovada na câmara baixa, ela ainda precisará passar pela câmara alta, que representa os 16 estados da Alemanha.
O principal obstáculo para a aprovação parece ter sido superado na segunda-feira, quando os Eleitores Livres da Baviera concordaram em apoiar o projeto.
Os conservadores e o SPD desejam aprovar a legislação antes da formação de uma nova câmara baixa, prevista para começar no próximo dia 25 de março. Eles temem que o projeto seja bloqueado por uma maior presença de parlamentares de extrema-direita e extrema-esquerda no futuro congresso.
Merz justificou a urgência, destacando a necessidade de mudanças nas políticas dos EUA, especialmente com a presidência de Donald Trump, e alertando para uma Rússia hostil e um governo americano imprevisível. Para ele, a Europa não pode se dar ao luxo de ficar exposta a essas ameaças.
Se aprovada, a reforma fiscal representará uma grande reversão do chamado freio da dívida, uma política fiscal rigorosa implementada após a crise financeira de 2008. Muitos consideram essa política ultrapassada, argumentando que ela limita a capacidade do governo de responder a desafios econômicos contemporâneos. Entretanto, a mudança gerou críticas dentro do próprio partido de Merz, com opositores acusando-o de “fraude eleitoral” por prometer não aumentar os gastos durante a campanha e anunciar uma mudança de postura fiscal logo após a vitória nas urnas.
Economistas alertam que o aumento de gastos não será suficiente para garantir um crescimento sustentável na economia alemã, que contraiu por dois anos consecutivos. Merz reconheceu os desafios e afirmou, em uma postagem no X (anteriormente Twitter), que "os problemas não serão todos resolvidos com a decisão de amanhã". O político enfatizou a necessidade de um pacto de coalizão para enfrentar as dificuldades econômicas do país e avançar nas reformas necessárias.
Die Bürgerinnen und Bürger haben uns am 23. Februar einen Regierungsauftrag gegeben – wir stellen uns diesem. Mit der Entscheidung von morgen werden die Probleme nicht allein gelöst. Die Herausforderungen, vor denen wir stehen, müssen jetzt angepackt werden. Wir müssen in allen…
— Friedrich Merz (@_FriedrichMerz) March 17, 2025
A defesa de gastos recordes em defesa na Alemanha vem para se alinhar com Washington. Por sua vez, as siglas de esquerda e direita, tradicionalmente consideradas extremistas, se opõem ao rearmamento. É uma guinada que vem sendo resumida como a mudança de Welfare State (o estado de bem-estar social que marcou a Europa nas últimas décadas) para Warfare State (estado voltado para a guerra).
Do ponto de vista político, pode ser um risco para os partidos de centro. "Uma possibilidade única, que nenhum dos partidos centristas parece ter considerado, é que eles serão desacreditados se suas preparações para o Armagedom se revelarem desnecessárias, mas extremamente caras para os contribuintes e destrutivas para os serviços públicos populares", diz Anatole Kaletsky, fundador e economista-chefe da Gavekal, em relatório.
"Enquanto isso, partidos 'extremos' tanto da esquerda quanto da direita terão a oportunidade, ao se oporem ao rearmamento, de se apresentarem como razoáveis defensores dos contribuintes e do estado de bem-estar social", prossegue Kaletsky.
A mudança pode ter um impacto macroeconômico significativo na Alemanha, que desde 2009, segue um rígido freio constitucional da dívida, que limita déficits a 0,35% do PIB ajustado ciclicamente.[/grifar] Em entrevista à EXAME para uma série de reportagens para a recente eleição alemã, diversos empresários locais afirmaram esperar que o novo governo constituído fizesse mudanças de impacto na economia, que se vê numa encruzilhada com energia mais cara após o conflito entre Rússia e Ucrânia, menor apoio dos EUA e competição acirrada de produtos chineses.
Nos últimos anos, a maior economia da Europa mergulhou em recessão nos últimos dois anos, segundo o FMI. Para 2025, o Fundo estima alta modesta, de 0,3%.
"Agora é quase certo que, para criar mais espaço fiscal para novos gastos com defesa, a Alemanha terá déficits substancialmente maiores do que os 0,35% do PIB "ajustados ciclicamente" exigidos pelo freio da dívida", aponta Kaletsky.
Para a Gavekal, a direção da economia é agora "inconfundível". "E ela está indo para longe dos dogmas do orçamento equilibrado", diz o relatório. "Uma vez que o precedente seja estabelecido para mais flexibilidade fiscal a fim de permitir gastos emergenciais com defesa, as pressões políticas se tornarão muito fortes para aplicar lógica semelhante a mudanças climáticas, infraestrutura e outros desafios 'existenciais'."
Em suma, anota a Gavekal, se a Alemanha começar a revisar seus dogmas fiscais, a Comissão Europeia "certamente seguirá com interpretações mais flexíveis das regras fiscais da UE".
A mudança pode ser positiva para os mercados. Um relaxamento das restrições fiscais pode reduzir a necessidade de juros artificialmente baixos para sustentar a economia. Caso a Europa abandone políticas fiscais contracionistas, o euro e ativos europeus, especialmente do setor financeiro, podem se valorizar, avalia a casa de análise.
"Um retorno às taxas de juros reais positivas na Europa seria otimista para o euro, para as ações europeias, especialmente no setor financeiro, e para a alocação de capital de forma geral. Embora os mercados já estejam se movendo nessa direção com esperanças de algum alívio fiscal, as avaliações atuais apenas refletem uma modesta probabilidade desse cenário", diz o relatório. "Se isso realmente se concretizar, haverá muito potencial de valorização para o euro e muitos ativos europeus."