Mundo

Entenda por que mudança política na Síria e papel de Trump explicam dissolução do PKK na Turquia

Organização considerada terrorista por Ancara e aliados ocidentais anunciou o fim de mais de quatro décadas de luta armada contra o Estado turco que deixou milhares de mortos

Manifestante agita bandeira com retrato de Abdullah Ocalan, líder do PKK, durante manifestação na Síria (Delil SOULEIMAN / AFP)

Manifestante agita bandeira com retrato de Abdullah Ocalan, líder do PKK, durante manifestação na Síria (Delil SOULEIMAN / AFP)

Agência o Globo
Agência o Globo

Agência de notícias

Publicado em 15 de maio de 2025 às 11h39.

O anúncio da dissolução do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) e o fim de mais de quatro décadas de luta armada contra o Estado turco que deixou dezenas de milhares de mortos foi celebrado, na segunda-feira, pelo presidente Recep Tayyip Erdogan como uma "decisão importante para manter a paz e a fraternidade" na Turquia, onde os curdos representam um quinto da população.

Mas se a medida constitui uma vitória expressiva para Ancara, por outro lado, pode significar a sobrevivência do movimento curdo e de sua luta por autonomia em um contexto de alteração do equilíbrio de poder no Oriente Médio, dizem analistas. Mudanças políticas na Síria e o papel do presidente dos EUA, Donald Trump, ajudam a explicar essa equação, afirmam.

O último processo de paz iniciado entre a Turquia e o PKK data de dez anos atrás, entre 2013 e 2015. O fim da trégua, porém, resultou na eclosão de conflitos em várias cidades nas províncias de maioria curda no sudeste da Turquia, onde o partido havia declarado um autogoverno curdo. Os combates duraram até 2019, quando os militares já haviam expulsado em grande parte os combatentes do PKK do país. O campo de batalha então mudou-se para o norte da Síria e as montanhas íngremes do norte do Iraque, enquanto o PKK continuava a sofrer grandes reveses.

Dentro da Turquia, representantes do partido de oposição pró-curdo DEM e simpatizantes do movimento curdo enfrentaram intensa repressão governamental sob alegações de supostas ligações com o PKK — considerado pela Turquia e seus aliados ocidentais uma organização terrorista — o que levou à prisão de muitos parlamentares e à destituição de muitos prefeitos ligados à sigla.

Uma área onde o PKK, por meio de seus afiliados, se manteve firme foi o nordeste da Síria. Desde 2012, essa região tem sido um reduto das Unidades de Proteção Popular (YPG), a espinha dorsal das Forças Democráticas Sírias (FDS), explica o Crisis Group. As FDS mantêm laços com o PKK e incluem em suas fileiras quadros não sírios da organização, treinados pela liderança do PKK em sua sede nas montanhas Qandil, no norte do Iraque.

Acordo histórico

Em 2015, as FDS consolidaram seu controle do nordeste da Síria, uma área rica em recursos, após a parceria com os EUA para eliminar o Estado Islâmico (ISIS). Dois anos depois, estabeleceram uma autoproclamada "administração autônoma", graças ao apoio militar americano, que permitiu ao grupo governar a região e manter o controle de sua segurança.

Mas a pressão da Turquia foi grande, já que Ancara via as SDF como uma ameaça à sua segurança nacional. Em dezembro de 2024, enquanto os rebeldes sírios lançaram uma ofensiva relâmpago para derrubar o regime de Bashar al-Assad, os grupos apoiados pela Turquia aproveitaram para expulsar as FDS de várias cidades ao norte de Aleppo. Desde então, porém, Ancara reduziu suas incursões no nordeste da Síria, aparentemente para dar espaço ao governo interino em Damasco para buscar negociações diretas com as FDS sobre como a região poderia ser reintegrada ao novo Estado sírio, acrescenta o Crisis Group.

As negociações resultaram em um acordo histórico firmado em 10 de março para integrar as instituições comandadas pela FDS no nordeste do país ao Estado, abrindo caminho para redefinir a governança da região, colocando-a sob o controle total de Damasco. O entendimento prevê um cessar-fogo nacional e estabelece que os curdos são parte integrante da Síria, com garantia de cidadania e direitos constitucionais. Também inclui o compromisso das SDF em combater aliados de Assad, no momento em que o país vive a mais grave onda de violência desde a queda do antigo regime.

O momento do acordo coincide com mudanças na política dos EUA. Sob o governo de Trump, Washington indicou planos para retirar suas tropas da Síria, o que enfraqueceria a resistência das FDS.

— A Síria é sua própria bagunça. Eles já têm bagunças suficientes lá. Eles não precisam de nós envolvidos em todas elas — declarou Trump no começo deste ano.

O rebeldes liderados pelos jihadistas do Hayet Tahrir al-Sham (HDS) — grupo cujas origens remontam à al-Qaeda — venceram a guerra contra o regime de Assad na Síria, mas não tiveram sucesso em erodir completamente a presença do PKK no norte do país, destaca Selim Koru, autor de "New Turkey and the Far Right" (A nova Turquia e a extrema direita), em entrevista à Turkey recap, uma newsletter independente centrada na política turca.

— As YPG [aliadas do PKK no norte da Síria], têm uma presença bastante substancial na região, e isso não mudou. A solução militar para esse problema, ou seja, simplesmente invadir e tomar Rojava à força, teria sido muito custosa — afirmou.

Rojava, ou Curdistão Sírio, refere-se à Administração Autônoma Democrática do Norte e Leste da Síria, nome dado pelos curdos à região controlada pelas YPG.

— A alternativa era algum tipo de acordo em que o grupo deporia as armas para obter algum tipo de devolução básica, ao que parece, uma autonomia nominal — acrescentou Koru. — Esse também é o raciocínio por trás do processo de paz do PKK.

Solução 'escancarada'

O anúncio da dissolução do PKK aconteceu após um apelo histórico de seu fundador, Abdullah Öcalan, que está cumprindo prisão perpétua sem liberdade condicional na ilha-prisão de Imrali, perto de Istambul, desde 1999. Em 27 de fevereiro, ele pediu para que o grupo cessasse as hostilidades e iniciasse conversações para a dissolução. O pedido de Ocalan veio após conversações secretas iniciadas em outubro com um representante do governo Erdogan, nas quais as divergências sobre a Síria foram um obstáculo fundamental.

“Ancara parece ter suavizado sua posição, já que várias nações árabes têm resistido à crescente influência da Turquia na Síria”, escreveu Amberin Zaman, correspondente-chefe do Al-Monitor, site de notícias sobre o Oriente Médio, em fevereiro. “Se a mudança se mostrar duradoura, isso representará uma grande vitória para os curdos sírios.”

Os termos do acordo ainda não estão claros. Em público, as autoridades turcas afirmam que não estão prevendo nenhuma negociação, mas sim o desarmamento “incondicional” do PKK. No entanto, relatos da mídia sugerem que, se o processo avançar, poderá implicar anistias para os membros do PKK; libertação de membros presos e políticos do partido DEM; e libertação condicional (prisão domiciliar) de Öcalan, ou, se não for possível, melhores direitos de visita para ele na prisão. Outros itens poderiam incluir o abrandamento da repressão aos municípios governados pelo Partido DEM e a introdução de emendas constitucionais para ampliar os direitos há muito buscados pelos curdos da Turquia, como o ensino do idioma curdo.

— A porta para uma solução política para o problema curdo foi escancarada — declarou Aysegul Dogan, parlamentar do DEM, que desempenhou um papel fundamental no processo, na segunda-feira. — Tudo o que era visto como um obstáculo para a solução do problema curdo agora parece ter sido eliminado.

Na terça, Trump, que está em turnê pelo Oriente Médio, anunciou a retirada de sanções econômicas contra a Síria, que, há décadas, impedem qualquer financiamento estrangeiro ao país, incluindo ajuda humanitária. Segundo ele, o gesto foi feito a pedido do príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohamed bin Salman, e do presidente turco, Erdogan. Na quarta, ele se reuniu brevemente com Ahmed al-Sharaa, presidente interino do país e ex-líder do HTS, a quem descreveu como “um cara jovem, atraente e durão”. Foi o primeiro encontro em 25 anos entre um líder americano e um chefe de Estado sírio.

No plano político, os observadores esperam ainda que o governo demonstre uma nova abertura para os curdos, que representam cerca de 20% dos 85 milhões de habitantes da Turquia. Em paralelo, analistas consideram que um acordo com os curdos poderia permitir que Erdogan alterasse a Constituição e prolongasse o seu mandato, simultaneamente abrindo uma brecha entre os partidos pró-curdos e o restante da oposição turca.

— O principal motivador desta abertura com Öcalan sempre foi a consolidação do governo de Erdogan. Se todo esse processo for bem-sucedido, ele participará das eleições de 2028 como um candidato mais forte, enfrentando uma oposição dividida — disse à AFP Gönül Tol, diretor do programa para a Turquia do Middle East Institute.

 

Acompanhe tudo sobre:SíriaEstados Unidos (EUA)

Mais de Mundo

Peru anuncia criação de 'rota turística' do papa Leão XIV

'As ideias que Pepe plantou todos esses anos não morrem’, diz Lula no velório de Mujica

Inflação no Brasil vai cair conforme China exportar mais produtos para cá, diz estudo

Vídeo mostra momento raro de ruptura no solo após terremoto; assista