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Guerra pode acabar, mas Ucrânia dificilmente será pacificada, diz especialista em defesa

Para Mariana Kalil, professora da Escola Superior de Guerra, presença de milícias no território dificulta estabilidade do país no futuro

Escalada das tensões: reunião entre Donald Trump e Volodymyr Zelensky na Casa Branca em fevereiro  (Andrew Harnik/Getty Images)

Escalada das tensões: reunião entre Donald Trump e Volodymyr Zelensky na Casa Branca em fevereiro (Andrew Harnik/Getty Images)

Rafael Balago
Rafael Balago

Repórter de macroeconomia

Publicado em 23 de março de 2025 às 08h03.

Se o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, determinar que as tropas ucranianas parem de lutar na guerra, não há garantias de que todas as tropas seguirão suas ordens, pois há inúmeros grupos paramilitares atuando na guerra.

A avaliação é de Mariana Kalil, professora de geopolítica na Escola Superior de Guerra, do Ministério da Defesa do Brasil. Ela aponta que estas milícias, muitas delas treinadas com apoio do Ocidente, fragmentaram as cadeias de comando militar no país.

Em conversa com a EXAME, Kalil analisou também as consequências do rearmamento da Europa e como o presidente Donald Trump tem mudado um mantra da política americana, "fale suavemente, mas carregue um grande porrete".

Leia a íntegra da entrevista.

A senhora vê possibilidade de que a Guerra da Ucrânia termine nas próximas semanas ou meses?

Ela pode acabar no sentido de as tropas russas oficialmente saírem no território ou a Rússia ganhar uma parte do território, dependendo do que for negociado. Mesmo que haja a saída, há outro desafio. Desde 2014, grupos paramilitares são os mais influentes no terreno da guerra da Ucrânia, especialmente no leste. Assim, o monopólio legítimo do uso da força da Ucrânia continua bastante fragmentado. Isso quer dizer que o comandante-em-chefe, atualmente o Zelensky, não tem cadeia de comando com os grupos paramilitares. Então não basta ele dizer “vamos parar de lutar” e os grupos param. O Ocidente armou e treinou muitas milícias. A guerra pode acabar oficialmente, mas dificilmente a Ucrânia será pacificada.

Haveria maneiras de garantir uma paz mais duradoura?

A forma talvez mais cínica é que a Ucrânia não tente entrar na Otan ou na União Europeia. Me parece que o Putin tem uma linha vermelha, que é a sua fronteira não estar próxima da Otan. Não que eu concorde. Os países têm autodeterminação e devem e podem fazer o que acharem politicamente viável, mas tem consequências. Agora, isso não vai diminuir a tentativa de Moscou de interferir na política interna dos países daquela região, não só da Ucrânia. Acho que é isso que mais incomoda os ucranianos. Eles perceberam que de qualquer forma iam sofrer interferência externa da Rússia. 

Tem sido debatido o uso de uma força internacional para proteger a Ucrânia. Isso poderia funcionar?

Pensando na lente do conflito, qualquer tropa que seja colocada em terreno ali, em pouco tempo, pode ser superada pelas tropas russas. A única que talvez fosse eficiente seria a tropa americana, mas aí a Rússia não vai topar. Aí é como se tivesse a Otan ali.

Como avalia este momento em que a Europa anuncia planos de se rearmar?

Tenho lido bastante sobre esse tema e existem opiniões divergentes. Existem duas formas de viver o mundo nas relações internacionais, pela lente do conflito e pela lente da cooperação. A Europa, desde o final da Segunda Guerra Mundial, inclusive diante dos traumas da própria guerra, o Holocausto, a briga entre os países que levou a um grau de violência nunca visto pela humanidade, escolheu, inclusive por meio de incentivos dos próprios Estados Unidos, a lente da cooperação. A própria Guerra ao Terror não teria sido suficiente para quebrar a lógica de cooperação da Europa. França e Alemanha se negaram a participar da intervenção lateral dos Estados Unidos no Iraque. No entanto, com a saída do Reino Unido da União Europeia e Guerra da Ucrânia, algumas memórias da lente do conflito voltaram. Alguns dizem que a Europa demorou demais para voltar a enxergar o mundo pela lente do conflito. E outros dizem que ainda que enxergue nunca vai voltar a enxergar somente pela lente do conflito. Isso é uma coisa boa. 

Os Estados Unidos, sob comando de Donald Trump, tem dito que a Europa precisa se defender sozinha. Quais serão as consequências disso?

A Europa, a partir da iniciativa dos Estados Unidos atual, tem de tomar conta da sua própria defesa sozinha. Os Estados Unidos tem, retoricamente, abandonado a própria Otan. A gente ainda não sabe se, na prática, Trump de fato vai deixar a Otan desguarnecida, mas a gente acha que sim, porque ele está negociando de forma muito benevolente com o Putin. E aí a Europa teria que voltar a se rearmar. Nunca na história os americanos tinham feito isso porque a memória que se tem de uma Europa em competição é uma memória de guerra mundial. O sistema global de alianças gera uma guerra mundial a partir de conflitos europeus. Então, nunca os Estados Unidos tinham apoiado o rearmamento europeu de forma tão assertiva quanto o Trump está fazendo. No entanto, depois da Segunda Guerra Mundial, essa lente de cooperação que os europeus escolheram pode ter gerado um lastro de amizade que minimiza essa estrutura de animosidade. Se houver alguma racionalidade na posição do Trump é nesse sentido, acreditando que, depois de 1945, com o grau de cooperação que a Europa se engajou, a Europa se rearmar não significa necessariamente uma guerra global. No entanto, vamos contextualizar agora com a ascensão dos partidos de ultra direita.

Como esses partidos mudaram o jogo?

Com a ascensão dos partidos de ultra direita, a gente tem uma quebra do sistema político partidário inaugurado no pós-1945. Ou seja, os partidos traumatizados com a história da Segunda Guerra Mundial e mesmo a história do século XIX estão pressionados a sair do poder por essa ultra direita, que se associa a visões negacionistas da história. Por exemplo, associando a União Soviética ao nazismo, quando a gente sabe que a União Soviética combateu o nazismo. Ou ao olhar para a Rússia tanto como uma inspiração ideológica de autoritarismo quanto como uma forma de justificar o rearmamento, como na Alemanha.

Onde isso pode acabar? 

No que aconteceu na Segunda Guerra Mundial, porque esses partidos de ultra-direita não acreditam na lente cooperativa dentro da União Europeia. Tanto que o próprio Reino Unido saiu, teve o Brexit. Isso pode gerar conflito na Europa. Pode ser necessário, como na Segunda Guerra, países de fora do sistema europeu para resolver o problema da Europa. Um cenário bem complexo mesmo.

O que levou Trump a querer romper a ordem criada depois de 1945?

Eu falei de duas lentes que guiam as relações internacionais, da cooperação e do conflito. Trump rompe com as duas e adotou a que ele usou a vida inteira, a lente transacional. Ele enxerga o mundo em termos de trocas. Se em uma transação específica, ele entende que está perdendo acha que tem que reverter esse déficit. É absolutamente transacional, independente da estrutura, da história, das repercussões para próprios Estados Unidos, especialmente porque ele tem uma lente isolacionista. Ele não acredita na cooperação. Como os Estados Unidos são militarmente muito poderosos, o conflito é algo que ele acredita que os EUA conseguem evitar só com a ameaça e a dissuasão. Tanto que ele não acha que os Estados Unidos tenham de se envolver na Guerra da Ucrânia. Ele está usando o peso das armas americanas do lado ucraniano para acabar com a guerra. Para ele basta fazer comércio, trocas mais justas na cabeça dele. Trump parece não entender aquilo que historicamente foi fundacional para política externa americana, para o império americano, o “Big Stick”: “Fale suavemente e carregue um grande porrete”. Não é simplesmente uma questão de poder militar. Sempre foi também uma questão de falar suavemente. Posteriormente, teve uma revisão dessa frase no que a gente conhece como poder brando ou soft power. A influência, conquistar corações e mentes. Trump não parece preocupado em conquistar corações e mentes, ele parece preocupado só com o porrete e a dissuasão.

Isso tem levado a um aumento do sentimento anti-americano no mundo. 

O que vai ter um impacto econômico. Mas, como Trump diz, não é possível fazer uma receita sem quebrar ovos. Ele acredita que isso seja o custo da mudança dos Estados Unidos. Tanto que ele está prejudicando, com as tarifas, o setor rural americano, que é eleitor dele, dizendo que é um momento de readaptação.

O que mais podemos esperar nos próximos meses no cenário internacional?

Grandes surpresas e estranhamentos. Olhar o mundo e ver algo distinto daquele que a gente viveu no século 20, especialmente a década de 1990, que foi uma década de fim da história, em que os Estados Unidos tinham ganhado a Guerra Fria e houve uma década de euforia neoliberal. Agora é um mundo em que o Ocidente não coopera entre si e que o liberalismo é questionado por governos no próprio Ocidente, não só por China e por Rússia. 

Quais foram as razões para uma mudança tão profunda? 

Há uma multidão de razões. A economia é muito importante. A crise de 2008 é fundamental, e a ausência de resposta dentro do neoliberalismo para essas questões é muito relevante. Mas o mais relevante foi o fim da compatibilidade tênue entre neoliberalismo e democracia. A gente tem oligarquias, donos do poder econômico deixando de acreditar nessa lente cooperativa e passando para lente do conflito e deixando de lado os valores de equidade, diversidade, inclusão, por vários motivos. Um deles é porque a política gerava incentivos e desafios para esse capital. Hoje não gera mais. Gera, na verdade, uma cooptação desse capital para junto do governo, como nos Estados Unidos, para, estabelecer uma agenda específica que não mais se preocupa com essa compatibilidade entre democracia e neoliberalismo. 

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