Os presidentes Lula e Xi Jinping, em imagem de arquivo (Ricardo Stuckert / PR)
Repórter de macroeconomia
Publicado em 25 de agosto de 2025 às 06h01.
O comércio global como conhecíamos segue um modelo criado após a Segunda Guerra Mundial. Os Estados Unidos, vencedores do conflito, propuseram um modelo que favorecia o aumento do comércio entre os países e, ao mesmo tempo, os colocavam no centro do sistema internacional. Agora, os EUA estão desrespeitando as regras que eles mesmo defendiam, avalia o professor Robert Lawrence, que ensina comércio internacional em Harvard.
Neste contexto, avalia ele, a China deverá ganhar força no cenário global. “Se quiséssemos projetar um conjunto de políticas adotadas pelos Estados Unidos que fariam os países ao redor do mundo procurarem um líder alternativo, não poderíamos ter feito um trabalho melhor do que Trump fez”, diz.
“Até 2016, o sistema de comércio global era centrado na liderança americana. Os Estados Unidos aderiam à maioria das regras muito bem. Desde que Trump venceu, no entanto, ele encontrou pretextos para aumentar as tarifas e, essencialmente, violar as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC)”, diz Lawrence, em entrevista à EXAME.
“Nosso líder é o pior infrator da lei. E, nos episódios recentes, deu um passo ainda mais longe”, avalia, citando como exemplo o aumento de tarifas contra o Brasil para pressionar o sistema judicial do país.
Robert Z. Lawrence é professor de comércio internacional e investimentos na Harvard Kennedy School. Também é senior fellow no Peterson Institute for International Economics, pesquisador associado do Departamento Nacional de Pesquisa Econômica e autor de vários livros sobre comércio global. Leia abaixo a íntegra da entrevista.
Qual o peso histórico das mudanças tarifárias feitas por Trump?
É um marco histórico no colapso dos sistemas criados em Bretton Woods [em 1944, ao final da Segunda Guerra], e a principal beneficiária de todas essas políticas é a China. Se quiséssemos projetar um conjunto de políticas adotadas pelos Estados Unidos que fariam os países ao redor do mundo procurarem um líder alternativo, não poderíamos ter feito um trabalho melhor do que Trump fez. As questões sobre o Brics são um exemplo disso.
Como Trump está mudando o comércio global?
Até 2016, o sistema de comércio global era centrado na liderança americana. Os Estados Unidos aderiam à maioria das regras muito bem. Desde que Trump venceu, no entanto, ele encontrou pretextos para aumentar as tarifas e, essencialmente, violar as regras da OMC. Nosso líder é o pior infrator da lei. E, nos episódios recentes, deu um passo ainda mais longe.
Qual?
Havia uma longa tradição no regime de comércio de que os países se concentravam no comércio e não usavam a segurança nacional como uma razão para proteção comercial, mesmo que, legalmente, fossem autorizados a isso. A norma era que eles não o fizessem. Trump, por outro lado, invocou a segurança nacional para taxar o aço e o alumínio em seu primeiro mandato. E agora ele está taxando muitos setores sob o mesmo pretexto. Ele está falando sobre cobre, produtos farmacêuticos, automóveis e semicondutores. Isso é uma ruptura completa na norma.
Existe o princípio da MFN (Nação Mais Favorecida, na sigla em ingles), pelo qual você deve tratar todos os seus parceiros comerciais igualmente, a menos que tenha um acordo de livre comércio com eles. Essas tarifas recíprocas são baseadas em uma lógica bastante duvidosa e tratam muitos parceiros comerciais americanos de maneira diferente. O princípio fundamental do Gatt (estrutura anterior ao da Organização Mundial do Comércio), no coração do sistema multilateral, era o MFN incondicional. Você não usava outros pretextos para invocar sanções comerciais.
Agora, os Estados Unidos estão usando as tarifas como arma para alcançar objetivos não-econômicos, como tem ocorrido com seu país. O tratamento ao Brasil por causa de Bolsonaro, assim como o uso de tarifas em relação a políticas de imigração no México, Canadá e China, são exemplos em que as tarifas estão sendo usadas em um contexto que não tem nada a ver com economia ou comércio. Não são apenas os EUA. Também vimos, há alguns anos, a China tomando medidas contra a Austrália, quando os australianos questionou a origem da Covid e a Lituânia porque a China não gostou do que falaram sobre Taiwan.
Se olharmos de forma ampla, as tarifas de 10% para todos os parceiros comerciais como valor mínimo, violam os acordos de livre comércio dos EUA com os países da América Central. A tarifa de 15% sobre a Coreia viola o acordo de livre comércio dos EUA com a Coreia. Então, ele não está apenas quebrando seus acordos americanos na OMC, mas também está quebrando acordos comerciais regionais. Nesse contexto, é difícil para os países se sentirem seguros ao lidarem com os Estados Unidos. Este não é mais um país em que você pode confiar quando assina acordos. Ele simplesmente faz o que bem entende.
De que formas os demais países podem reagir a esta pressão?
Os países podem tentar construir uma Organização Mundial do Comércio menos um, na qual tentem continuar com o sistema da OMC. Essa é uma possibilidade, mas é problemática porque os Estados Unidos permanece como um membro. Então, isso não parece que vai funcionar.
O sistema global está se fragmentando cada vez mais, e os países buscarão alternativas principalmente por meio dos acordos comerciais regionais, que podem ser aprofundados. Os EUA representam apenas 13% das importações globais. Então, 87% do comércio não envolve os Estados Unidos. E a perda de crença no comércio aberto não é generalizada. Muitos países no mundo continuam buscando relações mais estreitas e mais integração. Então, essa é a direção provável que eles irão seguir. Eles estão sendo estimulados a buscar alternativas.
Trump tem forçado aberturas de mercados para empresas dos EUA. Elas poderão de fato se beneficiar deste movimento?
Não acho que isso vai ser um renascimento da manufatura para os Estados Unidos ou uma grande avenida aberta para as empresas. Mesmo quando os países concordam em "abrir" os mercados, isso não vai levar a um aumento massivo nas exportações americanas. Em alguns casos, por exemplo, ele está forçando muitos países a comprar gás, muitos desses países realmente precisam do gás natural, mas alguns estão tentando descarbonizar suas economias. Os automóveis americanos agora terão tarifas muito baixas na Europa. Mas não acho que os europeus gostem muito dos carros americanos. As tarifas nunca foram uma grande questão para os Estados Unidos fora da agricultura. Em sua maioria, as coisas que os EUA exportam são produtos muito sofisticados, que tendem a não enfrentar altas tarifas.
O efeito das tarifas vai tornar as empresas americanas menos competitivas se elas construírem nos Estados Unidos. Quero dizer, aumentamos o preço do aço em 50% com a tarifa. Todos os insumos que entram na produção de muitos dos produtos manufaturados ou exportações estão se tornando mais caros. Há muitos efeitos colaterais dessas políticas tarifárias, como a interrupção das cadeias de suprimento.
Alguma força interna nos EUA pode parar Trump de alguma forma? Há ações na Justiça sobre as tarifas, e temos as eleições de meio de mandato no próximo ano, quando Trump corre risco de perder parte da maioria no Congresso?
Cada vez mais, estamos vendo que ele é capaz de manipular o sistema. Em princípio, a política comercial e as tarifas deveriam estar sob a responsabilidade do Congresso. É o Congresso dos Estados Unidos quem tem o direito constitucional de decidir sobre tarifas. Mas o Congresso delegou esse poder ao presidente e agora, teria que reverter isso. Se os republicanos continuarem a ter ambas as casas, obviamente, isso não vai acontecer. Eu não sou um analista político, mas, até agora, Trump tenha conseguido intimidar completamente o Partido Republicano. Ele não está encontrando muita oposição lá. Então, a questão é: os democratas conseguem retomar a Câmara dos Representantes nas eleições de meio de mandato?
Nos tribunais, existe a possibilidade, mas não estou muito otimista de que os processos legais serão capazes de pará-lo. Tudo vai depender do que acontece com a economia dos EUA, como a fraqueza econômica, o surgimento de uma recessão, especialmente a possibilidade de que os preços subam particularmente em alguns bens importados. Mesmo que não apareçam grandes movimentos no Índice de Preços ao Consumidor, isso pode levar ao descontentamento do público e pode fazer os democratas terem uma chance.