No 9º ano, alunos estudam as formas de ocupação do sertão e seus impactos ambientais e observam pinturas rupestres em sítios arqueológicos do Parque Nacional da Serra da Capivara (Acervo do Colégio Santa Cruz)
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Publicado em 15 de outubro de 2025 às 15h35.
Última atualização em 15 de outubro de 2025 às 16h23.
Em Lagoa das Emas, uma comunidade quilombola no sertão do Piauí, um espaço simples de alvenaria mudou completamente o cotidiano de dezenas de famílias. Ali, onde antes faltavam locais para encontros e atividades coletivas, hoje há um centro comunitário construído com apoio financeiro e administrativo de alunos do Colégio Santa Cruz, uma escola particular da zona oeste de São Paulo.
O espaço serve como ponto de encontro da comunidade: abriga reuniões, cursos, festas e atividades educativas. No mesmo local, funciona também uma cozinha coletiva, onde os moradores passaram a produzir a merenda escolar – o que garantiu renda, autonomia e a chegada de recursos públicos à região.
O projeto que deu origem ao centro não surgiu por acaso. Ele é resultado de uma tradição pedagógica antiga do Santa Cruz, que há décadas envia alunos a diferentes regiões do país para unir conhecimento acadêmico e vivência social.
“A gente acredita que isso contribui para a formação integral do aluno e para o enfrentamento das complexas questões contemporâneas”, afirma Joana Procópio de Carvalho Ferreira, diretora do Ensino Fundamental 2 do Colégio Santa Cruz.
Essas viagens fazem parte dos “estudos do meio”, uma prática que culmina, no 9º ano, com uma semana de imersão entre Petrolina, o rio São Francisco e o Parque Nacional da Serra da Capivara. Os alunos estudam sobre energia eólica, patrimônio histórico, sustentabilidade e convivem com o cotidiano de comunidades locais.
Em uma dessas viagens, em 2016, o grupo conheceu Lagoa das Emas, uma comunidade quilombola próxima ao parque. A experiência deixou marcas profundas. “Um grupo de alunos me procurou e disse: ‘a gente não pode deixar o Piauí para trás’”, lembra Joana. De volta a São Paulo, eles decidiram transformar o incômodo em ação.
A escola apoiou, mas o protagonismo foi dos alunos: organizaram eventos, mobilizaram ex-colegas e famílias, e começaram a planejar, junto aos moradores, o que viria a ser o centro comunitário.
Alunos do Colégio Santa Cruz durante os estudos do meio no Piauí (Acervo do Colégio Santa Cruz)
O projeto foi desenhado com base nas demandas dos próprios moradores de Lagoa das Emas e executado com mão de obra local. O objetivo não era fazer uma doação, mas construir algo duradouro, útil e que fortalecesse a autonomia da comunidade.
“A ideia era fazer uma grande sombra, com uma pequena biblioteca e uma cozinha comunitária. Com isso, a comunidade passou a produzir a merenda escolar e receber a verba da prefeitura”, conta Joana.
Hoje, o espaço é usado para reuniões, cursos, festas, atividades educativas e produção de alimentação escolar. Além de garantir renda, o centro se tornou um símbolo de pertencimento e orgulho para Lagoa das Emas.
Com o sucesso da iniciativa, os alunos criaram a ONG Veredas para dar continuidade ao trabalho. A entidade passou a coordenar novas ações em Lagoa das Emas e a apoiar outras iniciativas na região.
Durante a pandemia, o grupo manteve o vínculo à distância. Organizou campanhas de arrecadação e recebeu apoio do consulado da França, que destinou R$ 200 mil à ONG. O recurso foi usado para fornecer cestas básicas e cartões de alimentação a 30 famílias em situação de vulnerabilidade no interior do Nordeste.
Além do centro comunitário, a ONG colabora com o Instituto Olho d’Água, que oferece atividades educacionais no contraturno, e apoia a criação de um pequeno museu local para preservar a história das famílias que viveram na região antes da criação do parque.
A principal fonte de financiamento vem do Piauí Fest, festival cultural criado pelos próprios alunos. O evento reúne apresentações musicais, comidas e rifas, e toda a renda é destinada às ações da ONG. Nas duas primeiras edições, mais de mil pessoas participaram.
“A gente mesmo compra água, fala com professores e tenta arrumar tudo pra que dê certo no dia. Toda a verba é destinada ao projeto. Acho que é muito coletivo”, conta Helena Baroni, 15, aluna do Santa Cruz e uma das organizadoras do festival.
A próxima edição será em 1º de novembro, e deve arrecadar recursos para novas atividades em Lagoa das Emas.
Antes do embarque, os alunos participam de palestras, analisam dados do IBGE e estudam os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Durante a jornada, visitam parques e usinas, convivem com moradores e aprendem, na prática, sobre desigualdade, história e sustentabilidade.
Desde 2024, há uma regra simples: viagem sem celular. “No começo, eles me olhavam tipo ‘é sério?’. Depois, o feedback foi unânime: ‘foi a melhor viagem, sem celular a gente aproveitou muito mais’”, relata Joana.
Ao retornar, os alunos criam instalações artísticas que traduzem o aprendizado vivido. “A escola vira uma grande bienal”, resume Joana.
Estudantes do 9º ano do Colégio Santa Cruz em expedição pelo Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí (Acervo do Colégio Santa Cruz)
Helena, que participou da viagem em 2023, diz que a experiência transformou sua forma de ver o Brasil. “Você chega lá e vê umas paisagens maravilhosas. A gente vê como há transformações muito importantes no nosso país, no nosso mundo.”
O aprendizado, diz ela, é coletivo. “Sempre essa viagem do 9º ano é muito esperada por todo mundo. Tive experiências incríveis, voltei com outro olhar de várias coisas.”
Com o passar dos anos, o vínculo entre o colégio e a comunidade se consolidou. Hoje, Lagoa das Emas espera anualmente a chegada dos ônibus do Santa Cruz. O projeto atravessou gerações de alunos e se tornou parte da cultura da escola.
“Ver outras realidades, quebrar preconceitos e perceber o valor das políticas públicas no território: é isso que esperamos que eles levem para a vida”, diz Joana.
O centro comunitário construído no sertão piauiense não é apenas uma obra física. É o retrato de uma escola que entende que formar cidadãos também é aprender a agir diante do que se vê.