Voepass: pedido de recuperação judicial acontece oito meses depois de um acidente com uma das aeronaves da empresa em Vinhedo (Leandro Fonseca/Exame)
Repórter de Negócios
Publicado em 23 de abril de 2025 às 09h54.
Última atualização em 23 de abril de 2025 às 14h05.
Antiga Passaredo, a paulista Voepass entrou com pedido de recuperação judicial com um passivo de 209 milhões de reais. Se considerados também os débitos que ficaram fora do processo, a dívida total ultrapassa 339 milhões de reais.
O pedido, protocolado na última terça-feira, 22, acontece oito meses depois de um acidente com uma das aeronaves da empresa em Vinhedo, no interior de São Paulo, deixando 62 mortos. Foi o quinto pior acidente da história envolvendo o modelo ATR 72 e o mais grave da aviação comercial brasileira desde 2007.
De lá para cá, a Voepass entrou numa briga jurídica especialmente com a Latam, empresa que comercializava os voos da companhia. No pedido de recuperação judicial, inclusive, atribuiu à Latam o título de "principal responsável pela crise" da empresa.
Em março, a empresa também teve todos os voos suspensos pela Anac, o que agravou ainda mais sua situação financeira.
Agora, a empresa tenta reorganizar suas dívidas e retomar parte das operações. A recuperação judicial é vista como último recurso para preservar empregos e garantir o mínimo de receita.
A Voepass atribui sua crise econômica e o pedido de recuperação judicial à Latam, sua principal parceira comercial nos últimos anos. No pedido enviado à Justiça, a companhia afirma de forma direta: "a principal responsável por sua crise econômico-financeira e pelo correlato pedido de Recuperação Judicial é a Latam".
A parceria começou em 2014 com um contrato de codeshare — uma prática comum no setor aéreo, em que companhias compartilham voos. Mas o vínculo evoluiu para uma relação de dependência, segundo a Voepass.
Em 2023, as empresas firmaram um novo acordo: a Latam passou a comprar com exclusividade a capacidade dos voos operados pela Voepass em determinadas rotas, assumindo o controle comercial total desses voos, inclusive a venda de passagens e definição de rotas. A Voepass operava, mas não controlava mais o que fazia.
Essa simbiose se aprofundou em 2024, com a assinatura de três contratos simultâneos — chamados no processo de "Instrumentos da Nova Parceria". Um deles envolvia a cessão de slots em Congonhas, os horários mais valiosos para pousos e decolagens. A Voepass cedeu à Latam slots em horários de pico e recebeu em troca horários de menor movimento.
Ainda de acordo com a Voepass, a Latam concedeu à até então parceira um empréstimo de 121 milhões de reais em troca de cláusulas de controle. A partir disso, diz o pedido de recuperação judicial, a Latam passou a exigir autorização para decisões internas, como mudanças societárias, pedidos de empréstimos e até a própria entrada com pedido de recuperação judicial.
"A Latam passou a ter livre acesso a informações financeiras, jurídicas e operacionais da Voepass, além de exigir autorização prévia para atos como ‘declaração de insolvência, pedido de autofalência’ e 'remuneração de sócios e executivos'", diz a inicial.
O ponto de ruptura veio após o acidente em Vinhedo, que matou 62 pessoas. A Latam suspendeu a operação de quatro das dez aeronaves ATR da Voepass usadas nos voos compartilhados. Segundo o processo, isso foi feito “sem base legal ou contratual” e causou “significativa perda de receitas” para a Voepass.
Além disso, a Voepass alega que a Latam passou a reter pagamentos que deveria fazer à parceira por custos operacionais — algo que a Voepass calcula em 35 milhões de reais, com acréscimo de 8 milhões por mês.
“A Latam também passou a reter ilegalmente os valores contratualmente devidos à Voepass a título de reembolso pelos custos fixos mensais incorridos com a manutenção das Aeronaves no solo”, diz a empresa.
A situação levou a uma disputa judicial. A Voepass já move um procedimento de arbitragem contra a Latam no CBMA, o Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem.
“Não se tratava de uma mera parceria de codeshare... mas sim de uma operação complexa, que culminou na outorga de inúmeros direitos de lado a lado”, diz o processo.
Em nota, a Latam afirmou que "o término da parceria comercial com a VoePass foi motivado principalmente pelo acidente ocorrido no voo 2283," e que a suspensão dos voos pela Anac "reforça as justificativas da rescisão contratual".
"A Latam Airlines Brasil repudia veementemente a injuriosa afirmação da VoePass sobre a responsabilidade atribuída a ela em relação à crise financeira da empresa", disse em nota.
A derrocada da Voepass se acelerou em março deste ano, quando a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) suspendeu todos os voos da companhia por tempo indeterminado. A decisão ocorreu durante a vigência da tutela cautelar prévia que a empresa havia solicitado para negociar dívidas com credores. Segundo a Voepass, a suspensão foi “absolutamente inesperada” e agravou drasticamente sua situação financeira.
Sem a possibilidade de voar, a companhia viu sua receita desaparecer. "Sem geração de caixa, o Grupo Voepass conseguiu apenas manter os pagamentos de algumas de suas obrigações essenciais”, o que levou ao crescimento do passivo e à inadimplência generalizada.
Antes da suspensão, a empresa operava com 11 aeronaves em mais de 16 destinos no Brasil. Com a paralisação, a frota foi reduzida a 8 aeronaves inativas, estacionadas em diferentes aeroportos do país.
A consequência imediata foi uma onda de demissões e cortes. O número de funcionários diretos caiu de 809 para 117. A maioria dos desligamentos atingiu tripulantes, pilotos e equipes de solo. No documento, a companhia enfatiza que tentou preservar ao máximo sua força de trabalho, mas com atrasos salariais e acúmulo de dívidas trabalhistas.
O processo de recuperação inclui débitos com ex-funcionários e fornecedores de serviços essenciais, como combustível, manutenção e taxas aeroportuárias.
Além da crise com a Latam e da suspensão dos voos, o processo também cita a estrutura jurídica do grupo como fator de complexidade. A Voepass atua com diversas empresas registradas em diferentes estados, cada uma com CNPJ próprio, o que gerou um emaranhado de passivos e ações judiciais.
Também pesam sobre a companhia os custos operacionais elevados e a dificuldade de competir em um mercado cada vez mais concentrado. A empresa tentou renegociar suas dívidas antes de recorrer à Justiça, inclusive por meio de uma tutela cautelar prévia. Mas, diante da deterioração do cenário, viu a recuperação judicial como a única alternativa viável.
Fundada há quase 30 anos em Ribeirão Preto, a Voepass nasceu como Passaredo. Voltada à aviação regional, operava com aviões menores e focava em rotas entre cidades médias e grandes centros.
A primeira recuperação judicial da empresa aconteceu em 2012, sendo concluída em 2017.
Nos anos seguintes, a Voepass tentou se reposicionar no mercado, adquirindo a MAP e se associando à Latam.
Em 2024, transportou quase 901 mil passageiros. Mas o modelo de negócio, dependente de grandes parcerias e com margens estreitas, mostrou-se frágil diante de choques como o acidente e a interrupção da parceria com a Latam.