Antropofagia, uma das obras de Tarsila do Amaral: Justiça determinou a reabertura dos inventários das gerações anteriores da família Amaral (Timothy A. Clary/Divulgação)
Repórter de Negócios
Publicado em 22 de julho de 2025 às 17h14.
Tarsila do Amaral queria ser a pintora do Brasil. Do chão, do povo, das cores do interior.
Hoje, mais de 50 anos depois da sua morte, ela está em almofadas da Westwing, camisetas da Chico Rei, vinhos da Vinho 22, lenços da Scarf Me e pôsteres de parede vendidos em e-commerce.
Seu nome virou marca — e um negócio que, embora não costume aparecer nas etiquetas, movimenta milhões de reais por ano.
A responsável por cuidar do uso comercial dessa imagem é a Tarsila S.A. (antiga Tale), empresa que detém os direitos patrimoniais sobre a obra da pintora.
Desde 2023, sob gestão de Paola Montenegro, sobrinha-bisneta de Tarsila, a empresa tem investido em uma estratégia de ampliação e diversificação dos licenciamentos. Segundo ela, o faturamento com esse tipo de parceria cresceu 50% no último ano.
Mas, por trás da expansão comercial, há um litígio familiar em curso — e uma pergunta ainda sem resposta: quem, afinal, tem o direito de falar (e lucrar) em nome de Tarsila?
A artista morreu em 1973 sem deixar filhos vivos.
Pela legislação brasileira, os direitos autorais e patrimoniais passaram aos irmãos — cujos descendentes, hoje, somam 56 herdeiros. Em vez de unidade, o que se formou foi um cabo de guerra judicial.
O ponto de ruptura veio em 2022.
Na ocasião, os demais herdeiros acusaram a então gestora da empresa, Tarsilinha do Amaral (sobrinha-neta da artista), teria firmado contratos comerciais fora da estrutura oficial, por meio de uma empresa chamada Manacá. A acusação: negociações à margem da Tarsila S.A. que teriam gerado receitas não distribuídas à família.
Tarsilinha nega as acusações e afirma que a empresa era usada apenas para atividades pessoais como consultora.
"A empresa da Tarsilinha se chama Manacá, e ela sempre existiu para os trabalhos da Tarsilinha. Ela dá aula, é museóloga. Isso sempre foi transaprente. E decidiram criar um factoide", disse à EXAME o advogado de Tarsilinha, Arystóbulo Freitas. "Nunca foi escondido. E não tem nada a ver com a exploração da imagem da Tarsila do Amaral".
Na época, ela foi afastada da gestão e, desde então, a Justiça passou a determinar o depósito dos valores arrecadados com a exploração da obra em uma conta judicial — inacessível a qualquer dos herdeiros até que a partilha seja resolvida. Segundo Arystóbulo, até agora, não houve depósito de dinheiro nesta conta judicial.
Para além da discussão sobre os contratos passados, o processo escancarou fissuras maiores. Uma delas envolve a autenticidade de obras: em 2024, uma tela atribuída à artista foi posta à venda na SP-Arte por R$ 16 milhões. Alguns herdeiros a consideraram falsa. A Tarsila S.A. afirmou atuar com laudos técnicos, mas a controvérsia evidenciou o grau de tensão entre os lados.
Em paralelo à disputa, a atual gestão da Tarsila S.A. vem mantendo sua estratégia de expansão. Dez novas parcerias foram firmadas desde o ano passado.
Os produtos variam entre itens de vestuário, design, decoração e experiências sensoriais.
“Percebemos que o público só acessava Tarsila em exposições. Quisemos aproximar mais, conversar com públicos diversos e com faixas de preço distintas”, afirma Paola.
A ideia de democratizar o modernismo não é nova. Mas, com a entrada de Tarsila em itens de consumo cotidiano, esse movimento ganha nova escala.
Uma coleção de quebra-cabeças da GUME, por exemplo, busca transformar a contemplação da obra em interação lúdica. O Vinho 22 reimaginou rótulos clássicos com as cores de quadros da artista.
Nos bastidores, parte dos herdeiros questiona a linha adotada. À EXAME, o advogado de Tarsilinha afirmou que algumas decisões — como o licenciamento de produtos que consideram de “mau gosto” — colocam em risco o legado da artista. "Por exemplo, foi feito licenciamento para produzir calcinha com obras de Tarsíla do Amaral. Nada contra calcinhas, mas se não tiver critérios, vai perder a importância e a relevância dessa artista", diz. "Não pode sair contratando uma série de licenciamentos".
O grupo que hoje está à frente da Tarsila S.A. refuta as críticas e afirma que todas as decisões passam por curadoria e seguem critérios técnicos e legais.
Em junho de 2025, uma nova tentativa de reorganização acirrou ainda mais o conflito. Tarsilinha convocou uma assembleia e obteve apoio de 34 dos 56 herdeiros para um novo plano de gestão. Dessa vez, ela abriria mão do comando, transferindo a liderança para três novos representantes. A partir desse entendimento, o grupo representado por Tarsilinha diz que o grupo à frente da Tale não tem mais o poder para negociar direitos de imagens. A ata foi registrada em cartório — mas, segundo o grupo de Paola Montenegro, a reunião "não tem qualquer validade jurídica".
Além da disputa societária, corre em paralelo um processo mais profundo e demorado: a Justiça determinou a reabertura dos inventários das gerações anteriores da família Amaral. Isso significa que, no longo prazo, até mesmo a estrutura da empresa e a definição de quem é ou não herdeiro pode ser reavaliada.
Enquanto isso, a artista que uma vez escreveu que queria “fazer pintura brasileira com alma” está nas vitrines, nos e-commerces, nos armários — e, por ora, no centro de uma batalha que mistura família, dinheiro e arte.