Paladar em Cuba: restaurantes privados se chamam "paladares" por causa de história da novela "Vale Tudo", da Globo
Repórter de Negócios
Publicado em 12 de outubro de 2025 às 08h02.
Nesta semana, a TV Globo exibe a última semana do remake de Vale Tudo, uma das maiores obras da teledramaturgia brasileira. Enquanto os telespectadores tentam descobrir quem matou a vilã Odete Roitman, também verão o desfecho de outros personagens importantes, como Raquel Acioly, que na versão original, travava uma guerra fria com a filha, Maria de Fátima, para debater se valia a pena ser honesto no país.
Em Cuba, no entanto, a primeira versão da novela tem outro significado.
Por lá, para muitos, Vale Tudo é um marco econômico.
Exibida pela televisão estatal em 1995, a história da personagem Raquel — que perde tudo, começa vendendo sanduíches na praia e constrói sua própria rede de restaurantes, chamada de Paladar — virou modelo real de sobrevivência. E deu nome ao principal símbolo da economia informal do país: os paladares cubanos.
Naquele ano, a ilha atravessava o “Período Especial”, colapso econômico causado pelo fim da União Soviética, sua principal aliada comercial.
Sem petróleo, comida ou empregos, o país foi forçado a flexibilizar sua economia — e pela primeira vez em décadas, autorizou pequenos negócios privados. Entre eles, os restaurantes familiares, abertos dentro das casas. Sem saber como chamá-los, os cubanos recorreram à ficção: batizaram os estabelecimentos de paladares, em homenagem ao nome do restaurante da novela.
Não foi coincidência. Vale Tudo foi exibida justamente no momento em que o governo começava a emitir licenças para trabalhadores autônomos, os chamados cuentapropistas.
A personagem Raquel, vivida por Regina Duarte, virou símbolo da nova mentalidade que começava a surgir: a de trabalhar por conta própria.
A influência foi tão concreta que, até hoje, o termo paladar - igual ao nome do restaurante de Raquel - é usado exclusivamente em Cuba para se referir a restaurantes privados.
Um nome vindo da ficção, que virou realidade — e que ajudou a transformar o setor de alimentação do país.
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Vale Tudo foi ao ar no Brasil entre 1988 e 1989 e se tornou um fenômeno internacional, vendida para mais de 50 países.
Em Cuba, foi exibida no início dos anos 1990, quando o país estava em colapso econômico. A personagem de Regina Duarte, abandonada pela filha e sem nada, começava a vender comida na praia e fundava uma rede de restaurantes chamada Paladar.
A trama encontrou eco direto na realidade cubana.
Após décadas de proibição à iniciativa privada, o governo de Fidel Castro passou a liberar licenças para pequenos negócios — barbeiros, costureiras, manicures e, finalmente, restaurantes.
Sem tradição empreendedora, muitos cubanos usaram o modelo da novela como inspiração. E o nome acabou colando.
Os primeiros paladares tinham regras rígidas: no máximo 12 cadeiras, cardápio restrito (proibido carne vermelha e frutos do mar) e funcionários apenas da própria família. Operavam dentro das casas, com salas improvisadas e sem estrutura. Ainda assim, o movimento cresceu.
Com o tempo, os paladares passaram a competir diretamente com os restaurantes estatais.
Nos anos 2000, muitos paladares foram fechados por fiscais e a carga tributária aumentou. Vistorias frequentes, multas e confisco de produtos fizeram o número de estabelecimentos cair.
No entanto, em 2010, com Raúl Castro no poder, o regime reconheceu que o Estado não tinha mais condições de ser o único provedor de empregos.
Começava ali uma nova fase. Foram emitidas licenças para mais de 200 tipos de atividade privada e diversas restrições aos restaurantes foram retiradas. Os paladares passaram a poder vender pratos mais sofisticados, contratar funcionários e expandir seu número de mesas — até 20 por estabelecimento.
A legalização parcial trouxe uma explosão de criatividade.
Novos paladares começaram a oferecer pratos internacionais, influências mediterrâneas, experiências gastronômicas completas. De casas simples a salões elaborados, o formato virou um dos principais motores do turismo e do setor de serviços no país.
Hoje, os paladares estão espalhados por Havana e polos turísticos como Trinidad e Holguín.
A maioria ainda funciona dentro de casas, em esquema familiar, mas há espaços sofisticados, com cardápios elaborados e ambientação pensada para turistas estrangeiros.
A clientela é formada por visitantes e por cubanos de renda mais alta, geralmente sustentados por remessas de parentes no exterior. Para grande parte da população, os preços seguem inacessíveis. Ainda assim, os paladares são vistos como vitrine de criatividade e resiliência.
Apesar da evolução, o setor enfrenta limites. A legislação ainda proíbe a criação de redes ou franquias — o que impede, por exemplo, que um empreendedor abra várias unidades ou transforme o negócio em uma marca nacional.
Seja como for, o nome se consolidou como símbolo. E tudo começou com uma novela brasileira, cuja segunda versão termina nesta semana.