O voo do dragão
Hollywood sempre foi vista como sinônimo de sucesso. E não à toa: as maiores bilheterias da história do cinema são todas de lá — de "Avatar" (US$ 2,9 bilhões) a "Vingadores: Ultimato" (US$ 2,8 bilhões). Ou eram até o início deste ano, antes da estreia do chinês "Ne Zha 2".
No centro da guerra comercial entre China e Estados Unidos, que seguem na troca de farpas e tarifas, o filme tem apontado vitória para a gigante asiática — ao menos no cinema de 2025.
Já são US$ 2,1 bilhões em bilheteria* (e contando), que culminaram no 5º lugar da lista das 10 maiores arrecadações da história do cinema.
"Ne Zha 2" também já é a animação mais lucrativa do mundo, à frente de "Divertida Mente 2", da Pixar, que arrecadou US$ 1,67 bilhão em 2024.
O filme narra a história de Ne Zha e Ao Bing, que sobrevivem como espíritos após serem atingidos por um relâmpago e embarcam em uma aventura para reconstruir seus corpos.
A produção, que teve orçamento de US$ 80 milhões, também conquistou o feito de primeiro filme de língua não-inglesa a ultrapassar a marca do primeiro bilhão.
E Hollywood que se cuide, porque se "Ne Zha 2" — ainda em cartaz — arrecadar mais público nos próximos dias, terá força para superar "Titanic" e deixar o navio nas profundezas.
Atrás das câmeras, o mercado chinês sorri
Ainda sem previsão de estreia no Brasil e na América do Sul, a animação chegou nos cinemas da China no fim de janeiro de 2025, durante o Ano Novo Lunar, e na Europa, no Oriente Médio e na África, entre fevereiro e março.
De lá para cá, além dos recordes de público e arrecadação, fez os bastidores por trás das câmeras sorrir: a Beijing Enlight Media, que assina a produção do filme, viu seu valor de mercado aumentar em quase 40 bilhões de yuans (US$ 5,5 bilhões).
No último balanço divulgado, a Enlight Media, empresa pública fundada em 2000, apresentou receita de 2 bilhões de yuans (US$ 273,38 milhões) e lucro líquido de 510 milhões de yuans (US$ 69,74 milhões).
Ainda que "desconhecida" no mercado ocidental, a companhia vem numa crescente de sucesso nos últimos cinco anos para o oriental: "Jiang Ziya" faturou US$ 240,6 milhões em 2020 e "Article 20", do ano passado, fechou com US$ 306,9 milhões. O primeiro "Ne Zha", de 2019, arrecadou cerca de US$ 726,2 milhões.
O recorde fez as ações da Enlight Media subiram até o recorde de 40% em fevereiro e, na última semana, chegaram à valorização de 20%.
No total, o aumento foi para mais de 140% desde a reabertura do mercado chinês após o de lançamento do filme.
E não foi só a produtora que se beneficiou do sucesso. Outras empresas ligadas ao cinema chinês também viram o preço de suas ações subirem, caso da Maoyan Entertainment, plataforma de venda de ingressos online, que subiu 22% em Hong Kong na quarta-feira, 8, e da Alibaba Pictures Group, com 13%.
As livrarias também tiveram um aumento na clientela, segundo informações da Bloomberg, com a pré-venda de um livro de arte relacionado ao longa.
Ações da Beijing Enlight Media nos últimos seis meses. (Google Finance/Reprodução)
Made in China
A conquista do bilhão com o filme de 2025 é significativa para a indústria chinesa de cinema, que viu suas bilheterias caírem 23% no ano passado.
E chega num ótimo momento para o país, que fortalece a produção local em meio à guerra tarifária com o governo de Donald Trump nos Estados Unidos — ainda que estejam suspensas por 90 dias, as tarifas impostas pela Casa Branca à China chegaram aos 145% e as da gigante asiática ao país norte-americano estabilizaram na casa dos 105%.
No "toma lá, dá cá" entre as duas potências, a Administração Estatal de Cinema da China chegou a anunciar, no início de abril, que reduziria as importações de filmes dos Estados Unidos após a aplicação das tarifas de Trump.
E a ameaça não foi infundada.
Na prática, a falta dos filmes americanos não mudaria tanto os ponteiros da bilheteria da China, sobretudo porque o governo chinês mantém um controle rigoroso sobre os títulos em cartaz: para 2025, somente 34 estreias serão estadunidenses — e representam pouco menos de 20% da arrecadação total do cinema local.
O acesso restrito deu resultado. Nos últimos dez anos, mostram as agências de notícia do país, os filmes nacionais da gigante asiática foram responsáveis por 80% do faturamento do setor e arrecadam bem mais bilheteria que os estrangeiros.
Eventualmente, uma ou outra franquia se destaca, como foi o caso de "Transformers: O Despertar das Feras" (2023) ou "Barbie" (2023), mas são mais exceção do que regra. Em 2024, somente 31 produções hollywoodianas estrearam na China. Em 2018, foram 60.
Nesse esforço de valorizar a indústria nacional, com a estreia de "Ne Zha 2", o país asiático registrou a maior bilheteria da história na semana do Ano Novo Lunar — 9,48 bilhões de yuans (US$ 1,3 bilhão), segundo a consultoria de cinema oriental Maoyan —, 18% maior do que a arrecadada no ano passado, no mesmo período.
Do outro lado do mundo, a maior estreia de 2025 é "Um Filme Minecraft", agora com US$ 577 milhões em bilheteria, segundo o BoxOffice Mojo.
'Ne Zha 2' / Divulgação
Veja também
Há chances contra Hollywood?
É fácil entender por que a bilheteria da China importa tanto ao analisar o potencial de arrecadação.
Mais de 1,4 bilhão de pessoas vivem no país, segundo os dados mais recentes do Departamento do Censo dos Estados Unidos do Banco Mundial, o que significa dizer que, quando um filme tem bom faturamento por lá, o impacto também repercute no ocidente.
"Ne Zha 2", quinta maior bilheteria do mundo, é um bom exemplo. Mas segue como exceção.
Hollywood já não brilha mais como nos anos 1990, no entanto, a glamourosa indústria de Los Angeles ainda é líder de mercado quando o assunto é bilheteria.
Em 2024, enquanto a China arrecadava US$ 5,8 bilhões com o cinema com 501 filmes lançados (425 locais, 76 estrangeiros e 31 americanos), segundo dados do Deadline e Comscore, os Estados Unidos fechavam o ano com mais de US$ 8,57 bilhões, vindos de 569 longas, diz um levantamento da Statista. Os números compreendem somente o mercado doméstico de cada país.
No ano passado, somente dois filmes chineses — "Yolo" e "Pegasus 2" — integraram o top20 das maiores faturamentos de 2024 e ficaram na 14ª (US$ 433,5 milhões) e 15ª (US$ 422,8 milhões) posição, respectivamente.
Os 13 primeiros são todos norte-americanos, liderados por "Divertida Mente 2", que arrecadou mais de US$ 1,69 bilhão, e "Deadpool & Wolverine" (US$ 1,33 bilhão).
No caso dos Estados Unidos, ainda importa pouco se as maiores arrecadações de filmes chineses encostam no top20. E ter seus filmes barrados, mesmo em um país com potencial bilionário de bilheteria, não é tão preocupante.
Em 2024, as dez maiores bilheterias do ano (todas americanas) faturaram juntas US$ 8,85 bilhões em todo o mundo. A China foi responsável por US$ 438 milhões, cerca de 5% do total arrecadado**.
É importante lembrar que os filmes norte-americanos trabalham melhor sua distribuição fora dos Estados Unidos. Enquanto "Yolo", maior bilheteria chinesa do ano passado, estreou somente na China, Reino Unido, Austrália e Nova Zelândia, "Divertida Mente 2" chegou aos cinemas de 49 países — 13 deles na Ásia.
No fim, ainda falta muito para que a China de fato entre como competidora no jogo das telonas de Hollywood. Mas os números de 2025 devem cutucar a onça com a vara curta: se "Ne Zha 2" passar a marca dos US$ 2,5 bilhões em bilheteria e subir todos os indicadores chineses, a depender de como as tarifas de Trump vão afetar o cinema, quem sabe, o mercado asiático chame mais atenção dos investidores.
*Os dados são um compilado da Daily Box Office da China, que traz informações mais precisas do mercado de cinema oriental.
** Os dados de bilheteria foram coletados do BoxOffice Mojo e as porcentagens foram recalculadas pela EXAME.
Compartilhe este artigo
Tópicos relacionados
Créditos
Luiza Vilela
Repórter de POP
Formada em jornalismo pela PUC-SP e cursa pós-graduação em Gestão da Indústria Cinematográfica pela FAAP. Trabalhou para Record TV, Revista Consumidor Moderno e outros veículos de cultura brasileiros. Escreve sobre cinema e streaming.