Revista Exame

A crise global da comida

A inflação de alimentos mexe com a economia global, altera medidas econômicas e põe em xeque a popularidade dos governos ao redor do mundo

Mulheres protestam em Bangladesh: o preço da comida subiu acima da inflação em dezenas de países após a pandemia (Mamunur Rashid/NurPhoto/Getty Images)

Mulheres protestam em Bangladesh: o preço da comida subiu acima da inflação em dezenas de países após a pandemia (Mamunur Rashid/NurPhoto/Getty Images)

Publicado em 24 de abril de 2025 às 06h00.

O ato de comprar comida, geralmente um momento prazeroso que antecipa uma boa refeição, tem se tornado cada vez mais amargo. A sensação de que os preços de itens básicos, como arroz e café, sobem e não caem tem afetado consumidores em muitos países.

A começar pelo Brasil: um estudo do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre) mostra que os preços dos alimentos saltaram 162% de 2012 a 2024. Globalmente, desde 2020 o valor médio dos alimentos explodiu e nunca voltou aos patamares anteriores, por uma série de fatores. A pandemia e a guerra na Ucrânia foram alguns deles, mas as mudanças climáticas e as ações de governos, como aumentar benefícios sociais, também geraram mudanças. “

A combinação de choques de oferta e forte demanda criou uma tempestade perfeita para a inflação dos alimentos”, diz David Ortega, pesquisador de economia e política alimentar na universidade Michigan State, nos Estados Unidos. “Mesmo com o alívio de algumas pressões, os preços dos alimentos tendem a seguir altos. Uma vez que sobem, eles raramente caem de forma significativa.”

A alta constante do preço das commodities foi captada pelo FAO Food Price Index, um indicador do departamento das Nações Unidas para Alimentação que monitora o preço dos principais alimentos ao redor do mundo.

Esse índice determinou o preço médio dos alimentos entre 2014 e 2016 como base, de valor 100. Desde outubro de 2020, o indicador nunca mais ficou abaixo de 100 e teve recorde em 2022, quando bateu em 160,2, no começo da guerra contra a Ucrânia. Em março deste ano, fechou em 127,1, quase 7 pontos a mais do que em março de 2024.

Em 2020, a pandemia trouxe entraves para a produção e distribuição de comida, mas outro fator impactou o mercado. Como não havia atividades externas disponíveis, como viajar ou ir ao cinema, as pessoas acabaram gastando mais com comida. Além disso, governos, como do Brasil e dos Estados Unidos, deram dinheiro extra para as pessoas, em forma de benefícios emergenciais.

Os dois fatores geraram alta na demanda, em um momento de restrições de suprimentos, o que gerou aumento de preços. Dois anos depois, em 2022, quando os problemas de distribuição ainda estavam sendo resolvidos, a Rússia invadiu a Ucrânia. Os dois países são muito importantes para a produção de comida e de fertilizantes, e o novo choque gerou a alta recorde­ de preços.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva: alta da comida afeta popularidade do governo (Ricardo Stuckert/PR/Divulgação)

Nos últimos anos, houve ainda o impacto de tragédias climáticas. Nos Estados Unidos, secas em áreas onde há criação de gado reduziram a produção de carne.

Em 2024, um surto de gripe aviária levou ao sacrifício 100 milhões de galinhas, e elevou muito o preço dos ovos. Em meio a tantos problemas, o preço dos alimentos passou a subir acima da inflação geral em diversos países. Isso ocorreu em 56 de 168 países pesquisados por um estudo do Banco Mundial, que comparou dados de inflação anual de novembro de 2024 a fevereiro de 2025.

O Brasil foi um dos países onde houve maior discrepância entre a inflação real e a dos alimentos, entre 2% e 5% em termos reais, ao lado de Índia, Turquia e alguns países africanos. A Bolívia foi um dos poucos casos globais onde essa diferença passou de 5%.

No país, cidadãos protestam nas ruas há meses pela renúncia do presidente Luis Arce, com placas como “as pessoas têm fome”. Nos Estados Unidos, Joe Biden perdeu a reeleição para Donald Trump em 2024 em meio a críticas em razão da inflação da comida, apesar de o desemprego estar baixo.

No Brasil, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) venceu a eleição em 2022 prometendo baixar o preço da picanha, mas viu sua popularidade cair nos últimos meses, enquanto alimentos como arroz, café e ovos tiveram fortes altas — e desencadearam uma reação atabalhoada do governo para reverter a alta dos alimentos.

Embora os governos tenham poder limitado para lidar com altas súbitas de preços no mercado internacional, eles podem trabalhar em ações para aumentar a segurança alimentar no longo prazo, afirmam especialistas.

“Às vezes, os governos escolhem impor controle ou teto de preços para evitar o aumento. Geralmente, não é a forma mais eficiente de agir”, diz Monika Tothova, economista sênior da FAO. “Em vez disso, fornecer assistência direcionada a populações vulneráveis, como por meio de transferências diretas de dinheiro, tende a funcionar melhor.” Ortega, da Michigan State, diz que os governos podem ajudar ao fazer investimentos inteligentes em agricultura resiliente ao clima, fortalecer as cadeias de suprimento de alimentos e manter o acesso aos mercados globais.

“O que mais precisamos agora é de um período de estabilidade e previsibilidade. Quando formuladores de políticas introduzem medidas amplas, como tarifas, ou fazem mudanças repentinas nas relações comerciais, isso aumenta a incerteza e eleva os custos”, diz Ortega. “Essa incerteza acaba se refletindo nos preços pagos pelos consumidores.” Assim, as tarifas comerciais anunciadas pelo governo de Donald Trump podem complicar ainda mais o cenário.

Plantação de arroz no Japão: país enfrenta a falta do cereal, essencial na dieta dos japoneses (Benard/Andia/Universal Images Group/Getty Images)

Some-se ao quadro as questões climáticas que alteram ainda mais esse tabuleiro e elevam as incertezas. Se no passado o agricultor tinha mais condições de prever como o clima se comportaria ao longo de toda a safra, hoje isso está cada vez mais difícil.

Da soja brasileira ao trigo russo, passando pelo arroz indiano, os eventos climáticos extremos como geadas, períodos de seca e excesso de chuva vêm ocorrendo de forma desordenada e fora das safras habituais, o que tem feito os produtores redesenharem suas estratégias de plantio.

Para o meteorologista Willians Bini, além de os eventos climáticos impactarem a produtividade agrícola e comprometerem a oferta de alimentos, eles afetam culturas mais sensíveis, como o trigo e o café, e geram um efeito cascata na economia.

“O clima incerto resulta em perdas de quantidade, produtividade e no aumento da incidência de pragas e doenças”, diz Bini. “Como conse­quência, há uma demanda maior pelo uso de defensivos agrícolas, o que eleva o custo de produção, repassado na inflação de alimentos.”

O café, uma das culturas consideradas mais sensíveis pelo meteorologista, é exemplo disso. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que o preço do café moído subiu 77,8% nos últimos 12 meses até março, segundo o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).

O aumento está atrelado à queda na oferta e ao aumento na demanda. Brasil e Vietnã, que ocupam o primeiro e o segundo lugar na produção mundial do grão, viram suas safras encolherem desde o ciclo 2022/2023 por causa de eventos climáticos extremos, e o resultado não poderia ser outro: os preços da commodity dispararam nas bolsas de Nova York e de Londres.

E o futuro é pouco promissor, já que a expectativa para a safra 2025/2026 do café é de redução na produção em virtude do clima incerto. No cacau, a situação é bem parecida.

Desde 2023, uma combinação de crise climática e doenças afetou a produção global, especialmente em Gana e na Costa do Marfim, que, juntos, representam 70% do cultivo mundial do fruto, com 2,2 milhões e 680.000 toneladas, respectivamente.

Além disso, em 2024, o fenômeno El Niño elevou as temperaturas e causou estresse hídrico nos cacaueiros — as chuvas torrenciais espalharam a “podridão parda”, uma doença fúngica que afeta os cacaueiros e reduz a produtividade.

Mesmo com a volatilidade, as cotações do cacau na Bolsa de Valores de Nova York (NYSE) chegaram a quase 12.000 dólares por tonelada em 2024. Atualmente, os preços estão entre 8.000 e 9.000 dólares por tonelada (veja reportagem aqui).

No setor de ovos, o impacto climático também foi sentido. Neste começo de ano, os preços da proteína dispararam nos supermercados brasileiros — em fevereiro chegou a subir 15% no IPCA —, resultado de uma combinação de calor excessivo, que alterou a produtividade das galinhas, com o aumento de 42% nos últimos seis meses no preço do milho, principal ingrediente da ração desses animais, que responde por 70% dos custos.

“O calor intenso faz a galinha comer menos e botar ovos com casca mais fraca, o que diminui a fertilidade. Muitos produtores também precisaram substituir galinhas ineficientes, mas a reposição só começa a produzir ovos entre 18 e 20 semanas. Então tivemos uma redução de oferta, que agora coincide com o aumento da demanda”, diz Ricardo Santin, presidente da Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA).

Nos EUA, a crise no preço dos ovos se deu pela gripe aviária. Por lá, mais de 100 milhões de galinhas foram abatidas em virtude da doença, o que fez supermercados e restaurantes adotarem medidas para mitigar o impacto dos preços.

Alguns estabelecimentos, inclusive, chegaram a limitar a quantidade de ovos por consumidor para evitar uma crise maior de desabastecimento. Além disso, os varejistas reduziram promoções para garantir um nível mínimo de oferta.

Segundo Monika Tothova, da FAO, alimentos como café, cacau e azeite de oliva, cuja produção é concentrada em poucos locais, são mais propensos a ajustes súbitos de preços. “A produção desses itens está sujeita às condições climáticas e a surtos de doenças em locais muito específicos, e as quebras de safra não podem ser compensadas por aumentos de produção em outras regiões”, afirma.

Frutas em Teresina, no Piauí: mudanças climáticas dificultam o cultivo e ajudam a encarecer os produtos (Leandro Fonseca/Exame)

Além do clima, um ponto levantado por pesquisadores do FGV Ibre é o fato de ajustes no mercado agrícola, como a diminuição da área plantada com alimentos essenciais como arroz e feijão, também pressionarem os preços.

Segundo eles, a área destinada à soja e ao milho, principais commodities exportadas do Brasil, cresceu de 23 milhões para 44 milhões de hectares de 2010 a 2023. No mesmo período, a área plantada de arroz e feijão encolheu de 2,8 milhões para 1,6 milhão de hectares.

André Braz, que assina a pesquisa e é coordenador-adjunto do Índice de Preços ao Consumidor da FGV, diz que esse aumento de preços é mais sentido em países em desenvolvimento, onde a desigualdade é maior, e esse tipo de gasto ocupa uma parcela grande na conta das famílias.

“Quanto maior a participação de alimentos no orçamento familiar, mais a família vai perceber esses aumentos e terá menos capacidade de lidar com eles”, afirma. Na visão dele, a inflação de alimentos veio para ficar e não há como ser resolvida com o aumento de juros, para controlar a inflação, nem no curto prazo.

Nem mesmo a aposta do governo na supersafra brasileira — a expectativa da Companhia Nacional de Abastecimento (­Conab) é de que a safra brasileira de grãos em 2024/2025 atinja o recorde de 330 milhões de toneladas — deve alterar esse cenário, já que a produção de alimentos básicos, como o arroz e o feijão, deve permanecer aquém das necessidades.

“Mesmo que os produtos, hoje, comecem a apresentar queda de preço, não muda muito a percepção das famílias diante do acumulado. Elas já perderam o poder de compra e agora não conseguem mais comer tão bem quanto comiam”, diz Braz.

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) projeta um crescimento anual de 1,1% na produção mundial de alimentos entre 2023 e 2032. Já a demanda por alimentos deve crescer 1,3%, segundo projeções da FAO.

Segundo Braz, esse descompasso entre oferta e demanda gera preocupações em relação à sustentabilidade e à segurança alimentar global no longo prazo. Em meio a tarifas e guerra comercial, a solução deve passar por discussões entre os países.

A COP30, que será realizada no Brasil em novembro, deve ser um dos locais para esses debates, que vão pautar o futuro da comida no mundo todo — pelo menos é o que se espera. Enquanto isso, os governos terão de administrar a insatisfação dos cidadãos.

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