Para lidar com os recursos tecnológicos, certas skills precisam ter sido trabalhadas anteriormente. As ferramentas digitais são extensões das nossas habilidades, não substitutas delas (Daniel Grizelj/Getty Images)
Fundadora e Presidente do Conselho Cia de Talentos/Bettha.com
Publicado em 26 de junho de 2025 às 06h00.
Você acorda e a máquina que programou no dia anterior já passou seu café. A Alexa lembra dos seus compromissos do dia, informa quais mensagens estão pendentes e sugere até mesmo a melhor hora para sair, com base no trânsito da sua região. Você consegue entrar na primeira reunião da manhã diretamente da sua casa ou, quem sabe, do celular enquanto está a caminho da empresa. Não é necessário tomar nota de nada, porque uma função de inteligência artificial não só transcreve todo o conteúdo da reunião como o organiza em ata e indica quais incumbências foram direcionadas a você.
E, assim, segue sua rotina, com assistentes de IA otimizando a maior parte das tarefas, plataformas antecipando diversas necessidades, e sistemas automatizados cuidando do que antes era manual.
Se precisar, você consegue fazer tudo isso como antigamente, de um jeito, digamos, analógico. Dá mais trabalho, é mais difícil, leva mais tempo. Porém, você sabe o caminho das pedras. Só que não há necessidade de passar por ele — é tão mais simples e prático contar com ferramentas, dispositivos e recursos tecnológicos no dia a dia.
Imagine se a nossa vida tivesse sido sempre assim? Ela teria sido tão melhor, mais eficiente, mais produtiva, certo? Bem, a verdade é que não necessariamente.
Pode parecer que esse é um discurso contra a inovação, mas a mensagem é outra. Quero lembrar profissionais de hoje — e as gerações futuras — de que, por mais desconfortável que seja, todo mundo precisa aprender a fazer coisas difíceis. E não é só para desenvolver resiliência.
Sim, lidar com desafios ajuda a fortalecer nossa tolerância à frustração e a construir autonomia. Contudo, o meu ponto aqui tem mais a ver com a capacidade de adquirir habilidades que, lá na frente, nos ajudarão a pensar com clareza, tomar decisões com segurança e usar a tecnologia de forma realmente inteligente, estratégica.
Aliás, uma fala de Jonathan Haidt — o autor do famoso livro Geração Ansiosa — que me chama a atenção é justamente sobre o valor de deixarmos nossas crianças aprenderem a lidar com tarefas sem as facilidades do mundo moderno. Fazer conta de cabeça e escrever no papel não são meros caprichos da minha geração, que nasceu sem um celular na mão. Ao contrário, são exercícios fundamentais para o desenvolvimento do raciocínio lógico, da concentração e da autonomia.
Como psicóloga, lembro de estudar sobre propriocepção, coordenação motora fina e as chamadas praxias motoras — funções que envolvem planejamento, organização e execução de movimentos. Quando uma criança escreve a mão, por exemplo, ela está treinando não só a coordenação mas também a atenção, a memória e o encadeamento lógico das ideias.
Já quando ela precisa resolver uma conta sem calculadora, está fortalecendo circuitos mentais que serão importantíssimos para tomar decisões mais tarde, inclusive com o apoio de ferramentas inovadoras.
Isso tudo significa que a tecnologia deva ser encarada como inimiga do desenvolvimento humano? Não. Também não quer dizer que uma vida amparada por recursos tecnológicos seja isenta de dificuldades.
Mesmo hoje, com todas as modernidades de que dispomos, continuamos enfrentando dilemas complexos, necessidade de fazer escolhas difíceis, priorizar tarefas e lidar com excesso de informações e possibilidades.
A “moral da história” é que, para lidar com os recursos tecnológicos, certas skills precisam ter sido trabalhadas anteriormente. Afinal, as ferramentas digitais são extensões das nossas habilidades, não substitutas delas. Ou seja, se a base não está formada, o uso da tecnologia vira muleta — e não alavanca.
Entendo que, a princípio, pode soar contraditório dizer que o preparo para os desafios do mundo digital depende de processos aparentemente ultrapassados. Contudo, é justamente essa base que sustenta nossa capacidade de adaptação, de aprendizado contínuo e de pensamento crítico — características indispensáveis em qualquer cenário de inovação.
Portanto, se você lidera uma equipe, incentive seus colaboradores a não pularem etapas. Dê espaço para o erro, para o aprendizado difícil, para certo desconforto saudável. E, principalmente, crie ambientes nos quais o uso da tecnologia esteja a serviço do desenvolvimento, e não o contrário.
E, para quem está na faculdade ou entrando no mercado de trabalho, meu alerta é: não subestime as tarefas árduas. São elas que moldam sua estrutura profissional. Aprender a fazer o que é difícil hoje é o que permitirá, amanhã, atuar com mais autonomia, responsabilidade e discernimento.
Quis refletir sobre todas essas questões porque, em um mundo cada vez mais acelerado, é natural que nosso olhar esteja sempre lá na frente. Falamos sobre o futuro do trabalho, dos negócios e das profissões que ainda nem existem, mas, antes de pensarmos em tudo isso, talvez devêssemos olhar para as habilidades básicas de hoje. Aquelas que formam o alicerce do pensamento, da criatividade, da convivência e da responsabilidade.
Aprender a fazer coisas difíceis desde cedo é o que nos dá estrutura para lidar com os desafios — tecnológicos ou não.