Revista Exame

Disrupção farma

A entrada do Mercado Livre no varejo farmacêutico brasileiro testa a hegemonia de um setor ainda blindado por leis e normas

Farmácia da Pague Menos no The Town: venda de medicamentos isentos de prescrição em festival de música (Bruno Conrado/Divulgação)

Farmácia da Pague Menos no The Town: venda de medicamentos isentos de prescrição em festival de música (Bruno Conrado/Divulgação)

Mitchel Diniz
Mitchel Diniz

Editor de Invest

Publicado em 24 de outubro de 2025 às 06h00.

A Amazon anunciou que vai vender medicamentos sob prescrição médica em vending machines a partir de dezembro nos Estados Unidos. Comprar aspirina e ibuprofeno tal qual um snack em uma dessas máquinas não é hábito novo para os americanos. A CVS tem vários desses equipamentos espalhados em estações de metrô, parques, aeroportos e outros locais de grande movimentação. Mas, até aqui, não se tinha notícia de venda de remédios controlados com esse tipo de conveniência. E a primeira a fazer esse movimento, quem diria, não foi uma farmácia “raiz”, e sim um marketplace que está há pouco mais de cinco anos no segmento.

A Amazon Pharmacy começou em 2018 com a aquisição de uma healthtech, a PillPack, uma pioneira na venda on-line de medicamentos com prescrição médica nos Estados Unidos. O negócio ganhou tração na pandemia com a mesma fórmula que alçou a Amazon ao status de big tech: descontos agressivos, entrega rápida e gratuita.

Em 2022, a companhia pagou 3,5 bilhões de dólares pela One Medical. É uma rede de atendimento médico primário por teleconsultas ou presencial, e vai ser nessas clínicas que as vending machines de medicamentos da Amazon serão instaladas.

Os números da Amazon Pharmacy não são públicos, mas um documento interno ao qual o site Business Insider teve acesso apontava para um faturamento de 3 bilhões de dólares em 2024. Especialistas chegaram a dizer que a Amazon tinha potencial para se tornar uma das maiores farmácias dos EUA, se conseguisse manter o ritmo de expansão acelerado no longo prazo. Mas o número ainda é pequeno comparado à receita anual de CVS e Walgreens, que faturaram, cada uma, cerca de 100 bilhões de dólares no ano passado.

A farmácia do Meli no Jabaquara: “portinha” para um mercado bilionário (Letícia Furlan/Exame)

Só uma dessas redes faturou mais que o dobro do obtido por todo o varejo farmacêutico brasileiro em 2024, quando a cifra ultrapassou, pela primeira vez, a marca dos 200 bilhões… de reais. Frequentemente o Brasil aparece em primeiro lugar na lista dos países com maior número de farmácias do mundo: são 93.700, de acordo com números levantados pela consultoria IQVIA. As leis e normas sanitárias brasileiras ainda garantem que vendas de medicamentos, isentos ou não de prescrição médica, sejam realizadas única e exclusivamente por esses estabelecimentos.

Não é de hoje, porém, que empresas de outros setores, em busca de diversificação, tentam fazer parte desse grupo. Até agora, as varejistas farmacêuticas brasileiras conseguiram manter o setor “puro-sangue”. Mas os players sentem a disrupção bater à porta com mais força agora e estão se mexendo, seja para proteger suas fatias de mercado — seja simplesmente para impedir o ingresso de novos entrantes.

A história se repete

O Mercado Livre é o maior e-commerce da América Latina e também trabalha com venda de medicamentos em alguns países onde atua. Mas ao contrário da Amazon, que comercializa estoques próprios, o Meli se posiciona como um canal de venda para os sellers do seu marketplace, nesse caso, as farmácias.

Nos vizinhos Chile, Colômbia e Argentina, a empresa já opera com a venda de OTCs (over the counter), medicamentos que podem ser adquiridos sem ordem médica. No México, também está autorizado a comercializar remédios com prescrição. Mas faltava algo do tipo no Brasil, seu principal mercado.

Fernando Yunes, do Mercado Livre: projeto é vender estoques de outras farmácias na plataforma, e não ter rede própria (Leandro Fonseca /Exame)

Aqui o Meli não consegue replicar a operação nesse mesmo formato, por questões regulatórias. O ponto nevrálgico do entrave é uma resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a RDC 44. Ela veta a oferta de medicamentos pela internet que não seja feita por farmácias ou drogarias autorizadas e licenciadas por órgãos competentes. Em resumo: o remédio não pode sair de um centro de distribuição do Mercado Livre.

“Estamos tendo conversas com formadores de políticas públicas para atualizar a regulamentação e permitir que a gente opere no modelo marketplace”, afirmou Fernando Yunes, vice-presidente sênior do Mercado Livre e responsável pela operação brasileira, em uma recente coletiva de imprensa. Procurada pela EXAME, a Anvisa informou que “o processo de revisão da resolução RDC 44 está em fase interna de trabalho”.

A solução que o Meli arrumou para começar a tatear esse mercado foi comprar uma farmácia na zona sul de São Paulo, até então de propriedade da healthtech- Memed. Em posse de um estabelecimento já licenciado, aberto ao público e com farmacêutico de prontidão, o Meli quer dar início à operação em formato piloto na capital paulista. “É de fato algo possível, especialmente com estoque próprio. Nós vamos ter agora todas as licenças necessárias de farmácia”, explica Adriana Cardinali, diretora jurídica da companhia no Brasil.

Prontos para contra-atacar

Apesar do número extenso de farmácias no Brasil, o poder econômico do varejo farmacêutico está concentrado em um seleto grupo de grandes redes. As associadas da Associação Brasileira das Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma) movimentaram mais de 103 bilhões de reais no ano passado, praticamente metade do faturamento de todo o setor, dentro de um universo de menos de 12.000 estabelecimentos.

Carlos Fernandes, da Pague Menos: cliente com doença crônica vai quatro vezes mais à farmácia (Pague Menos/Divulgação)

“Uma loja da Abrafarma fatura 10 milhões de reais por ano. Uma farmácia típica fatura 700.000 reais”, diz Sérgio Mena Barreto, CEO da associação. Ainda que a entidade seja uma das principais vozes avessas à entrada do Mercado Livre no segmento, enxergando riscos de verticalização, o executivo diz que o grande varejo farmacêutico não teme disrupções.

“Novos entrantes vão encontrar um setor em que as lojas se transformaram em minicentros de distribuição para superar ineficiências e têm integração de sistemas mobile e físico totalmente fluido”, diz Mena. “Temos alto nível de previsibilidade de produção e de abastecimento também.” 

As armas de cada um

A gaúcha Panvel clama para si certo pioneirismo na venda de medicamentos online com entrega expressa, prática a que aderiu desde antes da pandemia. “Sempre entendemos isso como um diferencial competitivo em um mundo no qual o hábito de compra online só vai aumentar, e não diminuir, mesmo acreditando que o papel da loja física vai se manter forte ainda por muito tempo”, afirma Antônio Napp, CFO da companhia.

Segundo ele, para jogar o “jogo dos marketplaces” é preciso ter disponibilidade de produto e proximidade do cliente. “Se você não estiver próximo, as ferramentas não vão te identificar como o player de entrega”, explica, dando como exemplo o iFood. “A tendência é que essas plataformas cresçam com as nossas redes, não independentes delas.”

Na Pague Menos, a estratégia de focar clientes que estão em tratamento de doenças crônicas, como diabetes e hipertensão, ajuda a fazer frente à eventual chegada de novos entrantes, afirma Carlos Fernandes, vice-presidente de operações da companhia. “O cliente com esse perfil visita a farmácia com uma frequência quatro vezes maior e o ticket médio é 60% superior”, explica. “Não adianta montar todo um ecossistema sem conhecer a jornada do paciente primeiro.”

Vending machine da CVS: remédio sem prescrição em terminal de ônibus (Barry Chin/The Boston Globe/Getty Images)

A varejista farmacêutica deu, recentemente, um passo inusitado na busca por reconhecimento fora do Nordeste, seu mercado de origem. Foi a primeira a montar uma farmácia dentro de um festival de música, o The Town, para comercializar medicamentos isentos de prescrição médica. Repetiu essa mesma estratégia há poucas semanas, no Tomorrowland. Para tanto, conseguiu autorizações temporárias da Anvisa.

A Pague Menos tem uma farmácia de três andares em Fortaleza, considerada a maior do Brasil. Mas isso não significa que a empresa esteja se aproximando do varejo farmacêutico americano. “O modelo dos Estados Unidos é muito mercantilizado. Vamos continuar vendendo mercadorias, mas buscando nos aproximar cada vez mais das pessoas. Eu vejo o futuro do varejo farmacêutico indo mais para o lado do serviço”, afirma. Hoje, além da venda de produtos, as farmácias brasileiras podem realizar exames e aplicar vacinas. “Mas a realidade regulatória não permite que a gente vá muito além disso”, diz Napp, da Panvel.

A EXAME procurou a RD Saúde, maior rede de farmácias do Brasil, para conhecer suas estratégias de proteção a movimentos disruptivos, mas a companhia optou por não se manifestar.

Os players menores, como farmácias independentes que têm capilaridade e canais de venda mais limitados, acompanham a possível chegada de novos entrantes com um pouco mais de cautela, mas sem deixar de acreditar nas fortalezas do setor. “Cerca de 55.000 farmácias de micro e pequeno porte asseguram medicamentos em 93% dos municípios brasileiros”, afirma Rafael Espinhel, presidente-executivo da Associação Brasileira do Comércio Farmacêutico (Abcfarma).

A entidade representa 14.000 empresas com esse perfil. “Os pequenos estabelecimentos isolados estão mais expostos aos riscos de transformações de mercado e precisam de políticas de apoio e orientação técnica mais consistentes. O desafio é estrutural, mas não intransponível”, complementa.

A indústria está de olho

Os fabricantes de medicamentos estão mais flexíveis à venda de remédios fora da farmácia tradicional. “Ali atrás, a gente se posicionou contra vender medicamentos em supermercados, sem ter uma regulamentação para isso”, lembra Nelson Mussolini, presidente do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma). Esse é um tema que avançou de forma inédita no Congresso. Por décadas, as supermercadistas tentaram ter aval para vender medicamentos isentos de prescrição em suas gôndolas. O projeto de lei aprovado recentemente no Senado não dá essa permissão, mas autoriza a venda de remédios dentro dos estabelecimentos, desde que em estruturas apartadas e com presença de farmacêutico.

“Tendo sua farmácia própria, não vemos nenhum problema. O Brasil demorou muito tempo para elevar suas regras sanitárias e, em hipótese alguma, a indústria defendeu o rebaixamento delas”, diz Mussolini. Sobre a venda de remédios em mar-ketplace, ele diz que, “se não tiver uma forma de dispensar rapidamente o produto, e com segurança, o negócio não funciona”.

A pequena indústria, que depende mais do varejo físico e disputa visibilidade nas prateleiras das grandes farmácias com nomes mais conhecidos, teria uma vitrine a mais dentro de um marketplace. Ronnie Motta, CEO da -Natulab, fabricante de medicamentos isentos de prescrição, reconhece o lado vantajoso dessa conveniência — desde que isso não implique uso indiscriminado do produto. Afinal, esse pode ser um risco à reputação e existência do negócio. “A descentralização é positiva, desde que venha sempre acompanhada da responsabilidade”, conclui Motta.

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