Revista Exame

Eu não sou um robô: como Sam Altman quer provar que você é humano na era da IA

Ambicioso projeto de leitura de íris de Sam Altman já conta com 12 milhões de adeptos em mais de 100 países, mas enfrenta barreiras regulatórias no Brasil

Escaneamento de íris: teste de verificação humana permite provar identidade sem revelar dados pessoais (Kimberly White/Getty Images)

Escaneamento de íris: teste de verificação humana permite provar identidade sem revelar dados pessoais (Kimberly White/Getty Images)

Mariana Martucci
Mariana Martucci

Head de distribuição e audiovisual

Publicado em 22 de maio de 2025 às 06h00.

Última atualização em 22 de maio de 2025 às 08h30.

Na tela, a produtora musical Lara enfrenta um teste online que se recusa a reconhecê-la como humana. “Eu não sou um robô”, ela insiste — em vão —, enquanto o algoritmo sugere o contrário. A cena do premiado curta-metragem holandês Eu Não Sou um Robô (Oscar de Melhor Curta-Metragem de 2025) debate a angústia sobre como provamos nossa humanidade em um mundo onde máquinas decidem se somos ou não nós mesmos. A personagem descobre que toda a sua existência pode ser uma construção algorítmica depois de fracassar nos testes digitais de humanidade. É uma ficção perturbadora. E tem tudo a ver com os dilemas concretos que motivaram Sam Altman, CEO da OpenAI, a desenvolver um projeto focado na identificação humana: o protocolo World.

A EXAME foi conhecer o projeto de perto. Em um amplo galpão à beira das águas azuis de São Francisco, Califórnia, dezenas de pessoas se aglomeram ao redor de pedestais, cada um sustentando uma esfera metálica brilhante do tamanho de uma bola de futebol. Conhecido como “Orb”, o objeto lembra um olho humano gigante que parece saído diretamente de um filme de ficção científica. O evento marcava o lançamento oficial do World nos Estados Unidos. Entre drinques e conversas sobre distopia, Sam Altman, cofundador do projeto, explica a proposta: “Queríamos uma maneira de garantir que os humanos continuassem sendo especiais e centrais em um mundo onde a internet teria muito conteúdo gerado por IA”.

A expansão para o mercado americano não acontece por acaso. A mudança da administração federal dos Estados Unidos, agora sob o governo Trump, trouxe um cenário regulatório mais favorável às criptomoe­das, parte fundamental do projeto — uma vez que o escaneamento de íris é revertido em WLD, uma criptomoeda do universo World que pode no limite virar dinheiro real. O protocolo propõe criar um diretório global de humanos únicos por meio de escaneamento de íris. A proposta é simultaneamente ambiciosa e controversa: permitir que pessoas provem sua humanidade sem revelar dados pessoais adicionais, potencialmente viabilizando desde verificações em redes sociais até sistemas de renda básica universal.

O processo é relativamente simples: a pessoa se posiciona diante da Orb, o dispositivo escaneia suas íris e gera um código único. “As íris são extraordinariamente estáveis ao longo da vida e virtualmente impossíveis de falsificar com a tecnologia atual”, explica Damien Kieran, diretor de privacidade da Tools for Humanity. “Enquanto um sistema com base em reconhecimento facial pode ser enganado por deepfakes, a estrutura microscópica da íris humana possui uma complexidade que a torna exponencialmente mais segura.” Esse código, uma vez gerado, passa por um sofisticado processo de fragmentação criptográfica. A empresa divide o código em múltiplas partes, armazenadas separadamente em diferentes repositórios de dados operados por entidades legalmente distintas. Para obter um código de íris, seria necessário recombinar todas essas peças fragmentadas. “Você precisaria ter uma foto das íris originais, mas não guardamos as fotos”, diz Kieran.

Sam Altman, cofundador do World: “Queríamos garantir que os humanos continuassem especiais em um mundo dominado pela IA” (Kimberly White/Getty Images)

Desde sua fundação, em 2019, a ­Tools for Humanity atua como a empresa desenvolvedora da tecnologia por trás do protocolo World, responsável por criar e implementar o sistema de verificação biométrica. O projeto inicialmente ganhou tração em países emergentes, como Quênia e Indonésia. “Queremos tornar o World um sucesso global”, disse Alex Blania, CEO da Tools for Humanity, durante o evento. Sua visão para o aplicativo World é ambiciosa: “Ele deve se tornar o superaplicativo para a era da IA. Se criarmos um aplicativo que gerencie sua identidade, suas finanças e suas interações sociais em um só lugar, isso será uma combinação muito poderosa”.

Recentemente, a empresa anunciou colaborações estratégicas com o Match Group, operador de aplicativos de relacionamento como Tinder e Hinge. No futuro, esses aplicativos integrarão o World ID, que funciona como um “passaporte digital” que permite aos usuários provar sua humanidade de forma anônima, potencialmente eliminando perfis falsos e bots. Outra parceria significativa foi firmada com a Razer, fabricante de dispositivos populares entre gamers. A empresa planeja integrar a tecnologia World ID em suas webcams, permitindo que jogadores online garantam que estão competindo contra pessoas reais. No setor financeiro, o World anunciou uma parceria com a Visa para lançar um cartão de débito exclusivo para usuários do aplicativo, competindo diretamente com contas bancárias tradicionais.

Essa rede em expansão representa o que Alex Blania descreve como “a maior infraestrutura confiável possível para transações digitais”. O aplicativo World já opera em mais de 100 países e é utilizado por quase 25 milhões de pessoas. Em outubro, foi lançado o World 3.0, um “super-app” semelhante ao WeChat chinês, que inclui uma loja de mini-apps otimizados para humanos. Um passo cogitado é que a World se una à OpenAI para lançar uma rede social própria — com a garantia de que todos os seus usuários sejam donos de suas próprias íris. Quando questionado sobre uma possível colaboração, Blania respondeu que estava “definitivamente aberto a isso” e sugeriu que haveria mais novidades sobre esse assunto em breve.

Questões legais

O projeto World lidera uma corrida cada vez mais disputada. A Microsoft trabalha com o W3C e a Decentralized Identity Foundation para padronizar como esses sistemas devem funcionar. O modelo da Microsoft, com base em identificadores descentralizados (DIDs), permite que indivíduos criem e gerenciem suas próprias identidades digitais sem depender de autoridades centrais. A diferença fundamental entre essas abordagens e o World está na forma como a unicidade é verificada. Enquanto sistemas com base em DIDs ainda dependem em grande parte de processos de verificação tradicionais (como documentos governamentais) para estabelecer identidades, o World utiliza biometria da íris para garantir que cada identidade corresponda a um ser humano único. Existem também iniciativas governamentais significativas nesse espaço. A Índia desenvolveu o Aadhaar, o maior sistema de identificação biométrica do mundo, que já cadastrou mais de 1 bilhão de cidadãos. Na Estônia, o programa ­e-Residency permite que pessoas de qualquer lugar do mundo obtenham uma identidade digital verificada pelo governo estoniano.

Apesar do entusiasmo de seus criadores e investidores — a empresa arrecadou 115 milhões de dólares em financiamento de capital de risco apenas neste ano —, o projeto World enfrenta ceticismo e obstáculos regulatórios. A foto da íris é um processo rápido e indolor, mas deixa os participantes com sentimentos mistos — uma combinação de fascinação tecnológica e inquietação sobre as implicações futuras. “Eu não quero entregar meus dados pessoais”, disse um dos convidados no evento em São Francisco. Damien Kieran, diretor de privacidade da Tools for Humanity, reconhece os riscos, mas insiste nas salvaguardas: “O código pode confirmar que você é humano, mas não pode recriar sua íris — assim como um código de barras em uma caixa de biscoito te diz o que tem dentro, mas não te dá o biscoito”.

No Brasil, o projeto enfrenta desafios legais relacionados à coleta de dados biométricos e à compensação financeira oferecida aos participantes. A Autoridade Nacional de Proteção de Dados determinou em fevereiro deste ano a suspensão imediata dos pagamentos para as contas World ID no país, alegando que a vantagem econômica oferecida poderia comprometer o consentimento livre dos titulares dos dados, um princípio fundamental da Lei Geral de Proteção de Dados. Para a autoridade, a oferta de incentivos financeiros pode gerar uma pressão implícita, tornando o consentimento não totalmente livre. No entanto, a LGPD não proíbe explicitamente a oferta de incentivos, desde que o titular tenha autonomia real para decidir sobre o uso de seus dados.

Além das discussões sobre privacidade, existe a dimensão econômica das tecnologias biométricas. Segundo estudo da Fundação Getulio Vargas (FGV) em colaboração com a Unico, a ausência de biometria facial por apenas um dia provocaria redução de 4,7 bilhões de reais no PIB brasileiro. A pesquisa também mostra que o país desperdiçou pelo menos 104 bilhões de reais em 2021 por usar processos analógicos de identificação. Para o cidadão comum, os processos tradicionais de identificação também representam um ônus significativo. Em 2022, os brasileiros gastaram entre 497 e 830 reais no ano apenas para se identificar, o que inclui deslocamentos para apresentar documentos físicos, assinaturas presenciais e outros procedimentos burocráticos. Esse cenário se agrava com o avanço tecnológico: o Brasil lidera com um aumento alarmante de 9,2 vezes nas tentativas de fraude deepfake entre 2023 e 2024.

Evento em São Francisco: Altman e Blania anunciaram lançamento do projeto nos Estados Unidos sob novo cenário regulatório (Zach Hilty/BFA.com/Divulgação)

Para executivos da Tools for Humanity, o Brasil representa um mercado crucial para o projeto por diversos motivos estratégicos. Como uma das maiores economias emergentes do mundo e com uma população de mais de 210 milhões de pessoas, o país oferece uma escala significativa para qualquer tecnologia com ambições globais. Além disso, possui um ecossistema digital vibrante, com uma das maiores taxas de adoção de smartphones e redes sociais da América Latina. Para superar obstáculos regulatórios e acelerar a adoção global, a empresa está desenvolvendo novos dispositivos de hardware que facilitariam a verificação de identidade. A Orb Mini, uma versão compacta do dispositivo de escaneamento de íris, do tamanho de um smartphone, vai permitir identificação rápida em contextos cotidianos. Além disso, a empresa está trabalhando em um módulo que outros fabricantes poderão integrar em seus próprios dispositivos.

A possibilidade de uma web exclusivamente humana, onde cada perfil representa uma pessoa real, verificada por meio de identificadores biométricos únicos, poderia transformar radicalmente nossa experiência online — desde redes sociais livres de bots até marketplaces sem fraudes e sistemas de votação resistentes a manipulação. As capacidades da IA em persuasão e interação estão rapidamente se aproximando dos níveis humanos, antes mesmo de esses sistemas atingirem a inteligência super-humana. Durante uma caminhada por São Francisco em 2019, quando a IA generativa ainda era uma promessa distante, Sam Altman já se questionava sobre o problema que o World agora tenta resolver. “Ficou claro que precisaríamos de alguma forma de autenticar humanos na era das IAs autônomas”, diz. Enquanto acelera o desenvolvimento de inteligência artificial na OpenAI, Altman também constrói a infraestrutura para diferenciar humanos das máquinas que ele mesmo ajuda a criar. É uma jogada que reflete um entendimento pragmático do futuro. Vai ficar cada vez mais difícil separar o humano do digital — e ninguém mais capacitado para fazer isso que o empresário que mais está misturando esses dois mundos.   

Mariana Martucci, de São Francisco, Estados Unidos


ChatGPT, o que é isso?

Guia rápido de conceitos que definem a nova fronteira entre humanos e máquinas

IA autônoma (Agentic AI)

É o sistema de inteligência artificial com capacidade de agir de forma independente, sem necessidade de comandos diretos ou supervisão constante. O termo em inglês, agentic AI, define modelos que tomam decisões sozinhos, aprendem com experiências e adaptam seu comportamento conforme os resultados, em contraste com os sistemas tradicionais, que apenas reagem a ordens humanas.

Provas de conhecimento zero (ZKP)

A sigla vem do inglês zero-knowledge proofs e se refere a um método criptográfico que permite comprovar que uma informação é verdadeira sem revelar qual é essa informação. Essa técnica é usada para reforçar a privacidade em operações com criptomoedas, votação eletrônica e verificação de identidade em ambientes digitais públicos, como redes blockchain.

SLOP AI (Structured, Long, Open-ended Prompts)

Essa abordagem de engenharia de prompts, ou instruções dadas a uma IA, propõe perguntas longas, abertas e com mais contexto, permitindo que a inteligência artificial formule respostas mais criativas e aprofundadas. O objetivo é ampliar a capacidade interpretativa da IA, em vez de limitar suas respostas a comandos diretos e curtos.

Internet morta (Dead Internet Theory)

A chamada Dead Internet Theory descreve a ideia de que uma parcela crescente da web é formada por conteúdos sintéticos — produzidos por IAs, e não por pessoas. Textos, imagens, vídeos e até interações em redes sociais estariam sendo gerados de forma automatizada, levantando questões sobre autenticidade e controle da informação online.

Web3

A Web3 representa uma nova fase da internet com base em tecnologias descentralizadas, como o blockchain. Enquanto a Web1 era focada na leitura de conteúdos e a Web2 trouxe a possibilidade de interação entre usuários, a Web3 introduz o conceito de posse digital. Nela, usuários passam a ter mais controle sobre seus dados e podem ser proprietários de ativos digitais, como moedas virtuais e itens colecionáveis online.


“Não temos concorrentes”

Alex Blania deixou a computação quântica para fundar, com Sam Altman, a Tools for Humanity. Em entrevista exclusiva à EXAME, o CEO detalha como a explosão das agentic AIs pode revolucionar as interações humanas | Mariana Martucci

Alex Blania, CEO da Tools for Humanity: “Queremos construir a maior infraestrutura confiável para transações digitais na era da IA” (Zach Hilty/BFA.com/Divulgação)

Entendo que a proposta central do projeto seja identificar quem é humano e quem não é humano. Mas quais são os cenários mais surpreendentes que você imagina para justificar a existência da empresa?

A internet como um todo vai mudar drasticamente. Se 90% do tráfego da internet for impulsionado por IA, quase tudo que fazemos terá de mudar. Em um ano, provavelmente não conseguiremos mais identificar robôs nas redes sociais. Podemos acabar discutindo com IAs sem saber. Um estudo da Universidade de Zurique demonstrou como IAs são capazes de mudar opiniões e crenças em uma discussão no Reddit. Essas tecnologias podem influenciar completamente a opinião pública e até eleições. Toda a internet se baseia na interação entre pessoas, e isso está sendo desafiado agora.

Pode dar alguns exemplos concretos e reais?

Os aplicativos de namoro, como o Tinder, têm um problema enorme com bots. Gastam centenas de milhões por ano tentando excluir contas artificiais, mas isso está ficando impossível, porque as imagens e os comportamentos dessas contas estão cada vez mais realistas. Todas as grandes redes sociais e empresas de jogos estão muito preocupadas com isso. No futuro, as agentic AIs [veja quadro na pág. 66] serão capazes de executar múltiplas tarefas por você e serão mais inteligentes do que nós em muitos aspectos.

Como você vê humanos coexistindo com agentic AIs no futuro?

Sou otimista. O futuro será incrível, mas só se nós o tornarmos incrível. O lado positivo é que os agentes tornarão todos nós mais produtivos. No próximo ano, praticamente todos terão uma IA organizando sua vida, comprando comida e gerenciando agendas. A parte negativa é que pessoas mal-intencionadas poderão usar essas tecnologias para manipulação em massa, criando milhares de postagens diárias, novas contas e construindo influência rapidamente. Uma IA forte conseguirá ler seus pontos fracos por meio de suas postagens antigas, funcionando como uma ferramenta sobre-humana de persuasão.

Por que o projeto começou em economias emergentes, e não nos Estados Unidos?

Essa nunca foi a ideia. O princípio básico era começar em todos os lugares. As primeiras adoções em grande escala foram na Noruega e Suécia, mas queríamos garantir que pessoas na África, América Latina e Europa pudessem usar. Os Estados Unidos eram um caso especial, pela visibilidade de Sam Altman e pelo posicionamento do governo anterior sobre projetos de criptomoedas. Agora, com a mudança de administração, sentimos que seríamos bem-vindos por aqui.

Como os mini-apps ajudarão na estratégia global?

Grandes empresas, como o Tinder, usarão nossa tecnologia e a integrarão diretamente com o aplicativo. Lançaremos um sistema para que possam integrar a Worldcoin em seus próprios aplicativos. Os mini-apps são um playground de inovação, dando aos fundadores e empreendedores a chance de construir aplicativos usando nossa distribuição. Quando esses mini-apps crescerem, provavelmente desenvolverão seus próprios aplicativos separados. É essencialmente uma plataforma de lançamento.

Quais são seus concorrentes hoje?

Não temos concorrentes, porque que o que estamos fazendo era visto como algo tão maluco, mesmo um ou dois anos atrás, que ninguém nem sequer tentou. Sabemos pelos investidores que muitos projetos estão tentando levantar fundos para competir conosco. Provavelmente veremos alguns concorrentes surgindo neste ano, já que o valor comercial está se tornando evidente. Mas, depois de cinco anos neste projeto, entendo como é difícil fazê-lo funcionar, então acredito que temos uma grande vantagem.

Como você equilibra a expectativa comercial com o propósito social do projeto com os investidores?

Todos estão alinhados em torno dos mesmos objetivos. Cada usuário verificado recebe Worldcoin, e os investidores também, apenas um pouco mais. Todos querem o mesmo: que a rede Worldcoin tenha sucesso. O sucesso comercial beneficiará tanto investidores quanto usuários da rede. Usuários, desenvolvedores, mini-apps e investidores compartilham os mesmos incentivos.

Quais os próximos passos para escalar o projeto globalmente?

Meu foco para o próximo ano será integrar a maioria das grandes plataformas com nossa prova de humanidade. Uma grande rede social definitivamente deveria integrar isso. O desafio é o equilíbrio entre crescimento e infraestrutura — se Mark Zuckerberg quisesse implementar nossa solução, precisaríamos de 50.000 Orbs para cobrir sua base de usuários. Quanto maiores as plataformas que conseguirmos, mais intensos serão os requisitos. E é por isso que os mini-apps são importantes, porque eles dão liberdade aos jovens desenvolvedores para construir uma rede de aplicativos inovadores.

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