Fábrica da Guararapes, em Extremoz (RN): em ritmo intenso e coordenado, 9.000 pessoas se revezam em dois turnos de produção (Leandro Fonseca/Exame)
Repórter Exame IN
Publicado em 24 de abril de 2025 às 06h00.
É uma vastidão de máquinas de costura a perder de vista. Estamos na maior fábrica de roupas da América Latina, onde diariamente 9.000 pessoas se revezam num ritmo intenso e coordenado de produção. Os únicos realmente inertes são os manequins que vestem as roupas que cada célula de trabalhadores produz. Quando a EXAME chegou à fábrica da Guararapes, dona da Riachuelo, no começo de uma tarde de novembro, os looks de Carnaval dominavam a produção, já de olho na coleção que estaria nas lojas entre fevereiro e março. A visita terminou no começo da noite, depois de percorrer os 40.000 metros quadrados — algo como quatro campos de futebol — que a planta ocupa desde os anos 1980 em Extremoz, região metropolitana de Natal, no Rio Grande do Norte. Todo mês produz 4 milhões de peças. É de lá que saem, hoje, 40% das roupas vendidas na Riachuelo, um percentual que cresceu trimestre a trimestre (os outros 60% vêm de fornecedores nacionais e internacionais, sobretudo produtos de inverno e linhas como a marca Carter’s, licenciada pela empresa).
André Farber: ex-Boticário e Dafiti, o executivo é o primeiro CEO que não estava na companhia havia anos nem é da família (Leandro Fonseca/Exame)
A fábrica da Guararapes é chave num crescimento consistente da companhia — e um diferencial em relação a seus principais concorrentes. Grandes varejistas como Lojas Renner, Marisa e C&A mantêm há décadas suas coleções terceirizadas. Apenas a Guararapes manteve produção própria, uma decisão que trouxe enormes levas de questionamentos ao longo dos últimos 20 anos. A concorrência asiática, como todos sabem, é cruel: produz e vende peças por custos muito menores do que os brasileiros. Mas a pandemia de covid-19 e a recente guerra comercial intensificaram um rearranjo global nas cadeias de produção. Estar mais próximo dos consumidores e reagir rapidamente às mudanças de mercado virou um diferencial competitivo. E a Guararapes tem tirado proveito.
E, para tirar o melhor proveito do novo cenário, a empresa reorganizou a estrutura e ganhou escala. No início de 2023, fechou a fábrica de jeans que mantinha em Fortaleza, no Ceará, e centralizou a produção no Rio Grande do Norte. Todos os processos são feitos na fábrica, desde a lavagem e coloração das malhas até a estamparia e o corte. Essa centralização e o uso de novas tecnologias, como laser na linha jeans, ajudam o grupo a reduzir perdas, como explica o diretor industrial, Jairo Amorim. Em um programa de computador, mostrou ele ao time da EXAME, toda a área de um tecido é milimetricamente medida e tem os cortes de peças digitalmente projetados, para melhor aproveitamento. “A fábrica era tratada como mais um de nossos fornecedores, mas ela poderia ser nosso diferencial competitivo. Por isso decidimos aumentar a produção”, diz André Farber, CEO da companhia desde maio de 2023.
Ex-vice-presidente do grupo Boticário e CEO da varejista online de moda Dafiti, Farber cresceu nas oficinas de costura da família no bairro do Bom Retiro, em São Paulo, tradicional pelas confecções. Mas foi o mercado de cosméticos que o inspirou em sua estratégia à frente da Guararapes. “Companhias que têm a cadeia integrada têm uma vantagem competitiva no país. As empresas de cosméticos de maior sucesso no Brasil, Boticário e Natura, têm fábrica”, diz. “Isso permitiu que eles tivessem mais reatividade e mais margem.” O mercado têxtil se diferencia, pondera Farber, porque a barreira de entrada para ter uma fábrica é mais baixa, o que explica a quantidade alta de fornecedores. Segundo dados da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit), o país é o quarto maior produtor de malhas do mundo, com 25.000 confecções — a imensa maioria de pequeno porte.
Farber foi o primeiro CEO de fora do núcleo familiar de uma companhia intensamente conectada com seu estado natal. Substituiu Oswaldo Nunes, um executivo de carreira do grupo que tocou o negócio desde 2018, quando Flavio Rocha, acionista e atualmente presidente do conselho, saiu para tentar carreira política. Antes disso, até 2008, a cadeira de CEO era de Nevaldo Rocha, pai de Flavio e quem criou o negócio ao lado do irmão, Newton Rocha, ainda nos anos 1940. Vindo do interior do Rio Grande do Norte, Seu Nevaldo, como ficou conhecido, ia todos os dias à empresa, mesmo depois de deixar a direção executiva e ficar na presidência do conselho. O empresário morreu em junho de 2020. “A cultura de produção própria é um legado que vem do Seu Nevaldo”, diz Farber.
A chegada de Farber também aconteceu em um dos momentos mais complexos do grupo. Entre 2022 e 2023, o noticiário dizia que a família Rocha teria contratado bancos para buscar um sócio para a empresa, cuja dívida líquida havia chegado ao pico de 2,36 bilhões de reais. Nenhuma conversa com potenciais parceiros, que iam desde o então grupo Arezzo&Co até a SBF, avançou. Internamente, os ajustes se intensificaram. “Foram muitas alavancas concentradas em trazer a companhia para um padrão mais eficiente. Fizemos um projeto forte de eficiência de capital de giro, trouxemos para o caixa recursos de alguns ativos que não faziam muito sentido na companhia. Depois disso, voltamos a investir para crescer”, diz Miguel Cafruni, CFO da Guararapes. A dívida líquida no final de 2024 foi de apenas 499 milhões de reais, com a alavancagem passando de 2,3 vezes para 0,3 vez.
Midway Mall, em Natal (RN): a experiência do consumidor é uma arma para lidar com a concorrência asiática; a loja cumpre seu papel nessa estratégia (Leandro Fonseca/Exame)
A expectativa, segundo os executivos, é de continuar reduzindo o passivo e reinvestir a geração de caixa para buscar mais crescimento. Uma das possibilidades para levantar recursos, divulgada pelo jornal Valor, é a venda do shopping Midway Mall, no terreno em que a companhia foi fundada, em Natal. O aumento da penetração da fábrica nas vendas continuará como peça importante da expansão. A ruptura de produtos caiu para um quinto do que era, de acordo com Marcos Polli, diretor de planejamento industrial, cargo criado em 2024. A redução nos custos para os itens básicos, como camisetas, foi de até 35%, o que ajudou a melhorar a margem bruta das mercadorias em 2 pontos percentuais no último ano, para 50,9%, e levou a companhia a reverter o prejuízo de 2023 e lucrar 235 milhões de reais. O resultado também foi acompanhado de bons desempenhos da financeira Midway e do shopping, que ajudaram a receita a subir 9,5%, para 9,6 bilhões de reais.
Mais concorrência: chegada da sueca H&M é esperada com três lojas neste ano (Leandro Fonseca/Exame)
O desempenho se refletiu nas ações e na avaliação dos bancos. Até o início de abril, os papéis da varejista subiam 18%, o dobro do avanço do Ibovespa no mesmo período. Em revisão recente, o Safra elevou a recomendação do papel para compra. “Na Guararapes, a divisão de mercadorias demonstrou forte eficiência em vendas e custos, enquanto a divisão financeira se recuperou em 2024”, diz o texto. Em relatório sobre o quarto trimestre de 2024, o time de analistas do Itaú BBA listou os acertos da estratégia, em que ganhos de eficiência na planta industrial, juntamente com atividades promocionais reforçadas e otimização de estoques, contribuíram para uma expansão de margem acima das expectativas da equipe do banco, que também recomenda a compra do papel.
O olhar para a solução caseira pode ser também o caminho para a Riachuelo lidar com um ambiente mais competitivo e complexo em 2025. A expectativa de economistas é de que a economia brasileira perca ritmo e desacelere neste ano, especialmente a partir do segundo semestre, sentindo o impacto da inflação alta em itens básicos e do remédio amargo de juros mais elevados que o Banco Central tem precisado aplicar. A projeção das instituições financeiras é de que a Selic termine o ano no patamar de 15%. A varejista ainda terá de lidar com mais concorrência. Parte da avaliação de quem acompanha o setor é de que a Riachuelo, até 2024, havia perdido parte de sua fatia de mercado de peças básicas para a C&A. Uma pesquisa encomendada pela companhia ao Instituto Locomotiva mostrou que a percepção dos clientes era de que a Riachuelo estava cara, o que a levou, conta Farber, a revisar seu posicionamento. Em 2024, a distância entre as duas companhias diminuiu, a despeito do bom momento da concorrente. As vendas nas mesmas lojas da C&A cresceram 13,1%, enquanto a Guararapes teve aumento de 13,9%. Na Renner, o indicador avançou 7,5%, e na Marisa, 2%.
Além das brasileiras tradicionais, o ano deve ser marcado pela chegada da sueca H&M, que planeja abrir sua primeira loja no Shopping Iguatemi em São Paulo. Também será preciso continuar a lidar com a asiática Shein, que tem sido a pedra no sapato das brasileiras nos últimos anos e investido na expansão da sua presença no país, especialmente via marketplace. Em março, a chinesa informou que tinha 30.000 lojistas brasileiros vendendo na sua plataforma. Ela não abre dados das vendas no Brasil, mas fontes de mercado calculam que o faturamento tenha chegado a 9 bilhões de reais anuais. Um levantamento do BTG Pactual (do mesmo grupo de controle da EXAME) divulgado em janeiro mostra que os produtos da Shein são 9% mais baratos que os da Renner, 3% mais baratos que os da Riachuelo e 2% mais baratos que os da C&A.
É um sinal de alerta que pode ficar ainda mais evidente com a escalada da guerra comercial entre Estados Unidos e China, o que pode redirecionar uma grande leva de produtos chineses para mercados como o brasileiro. “A invasão de produtos chineses que vão chegar ao Brasil é um drama. A grande dificuldade para o presidente Lula não será lidar com Trump, mas, sim, com Xi Jinping”, disse Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais na Fundação Getulio Vargas (FGV), na Brazil Conference, em Harvard, no início de abril.
Fábrica da Guararapes, em Extremoz (RN): produção própria da Riachuelo passou de 30% para 40% das vendas, com foco em peças básicas (Leandro Fonseca/Exame)
Para as marcas brasileiras, a melhor resposta tende a ser uma combinação de preço competitivo com experiência de compra cada vez mais “premium”. A Riachuelo ampliou o número de lojas de 321 para 425 nos últimos cinco anos, com marcas como Riachuelo, Casa Riachuelo, Carter’s e Fanlab. Elas estão em regiões de consumo popular, mas também em shoppings de classes mais altas. E estão cada vez mais modernas e amplas. A primeira e maior loja da empresa, em Natal, conta com uma cafeteria interna e usa tecnologia que permite a todos os vendedores fechar a compra dos clientes. E tem espaços com decoração cada vez mais caprichada para linhas como a social. A linha jovem Pool, criada nos anos 1980, voltou a ser prioridade. Virou patrocinadora de festivais de música como The Town e Lollapalooza, além de ter sido uma das marcas na série Senna, da Netflix. Em diversas cenas, o ator Gabriel Leone, que interpretou o piloto Ayrton Senna, aparece com calças jeans da Pool. O ídolo brasileiro era garoto-propaganda da marca nos anos 1980.
Peças menos básicas e cada vez mais ligadas às tendências de moda devem seguir ganhando força nas lojas — e nas máquinas de costura da enorme fábrica em Extremoz. “Estamos investindo em células de teste e em redesenho constante dos processos. Teremos uma resposta ainda mais rápida para as tendências da moda”, afirma Farber. A linha de produção da Riachuelo fica a 6.000 quilômetros de Washington e a 15.000 quilômetros de Pequim, os epicentros da guerra comercial — mas a apenas algumas centenas de quilômetros de seus clientes brasileiros. Em meio ao caos global, não deixa de ser um alívio.