Revista Exame

Fronteiras transformadas

O avanço do multilateralismo sinalizava uma soberania compartilhada. Vinte anos depois, choques sucessivos reergueram barreiras e devolveram aos Estados um papel central

A interdependência segue incontornável. Sua importância foi renovada pela necessidade de enfrentar questões  como as mudanças climáticas e a inteligência artificial (Lobanova Tatiana/Getty Images)

A interdependência segue incontornável. Sua importância foi renovada pela necessidade de enfrentar questões como as mudanças climáticas e a inteligência artificial (Lobanova Tatiana/Getty Images)

Eduardo Felipe Matias
Eduardo Felipe Matias

Escritor e Doutor em direito internacional

Publicado em 31 de julho de 2025 às 20h00.

Meu livro A Humanidade e Suas Fronteiras, de 2005, começava com uma parábola futebolística. Um jogo que se desenrolava de forma inesperada, em que treinadores eram forçados a mexer no time por pressões externas incomuns, vindas até de fora do estádio, e regras deixavam de ser respeitadas em partes do campo invisíveis ao árbitro, cuja autoridade também era confrontada por atores diversos à beira do gramado — em uma época em que não havia VAR.

Naquele momento, o mundo passava por transformações que o afastavam da ordem internacional até então vigente. Assim como os técnicos e o juiz daquela estranha partida, Estados soberanos perdiam autonomia e viam sua capacidade- de ação reduzida por dois fatores: a globalização econômica e a revolução tecnológica, marcada pela consolidação do então chamado “ciberespaço”.

A crescente interdependência vinha acompanhada por uma globalização jurídica, com organizações de cooperação internacional e blocos de integração regional afetando a soberania estatal. Dimensões transnacionais e supranacionais eram incorporadas por meio de novos ordenamentos e instituições que expandiam suas fronteiras, enquanto as fronteiras estatais se tornavam mais permeáveis. Um novo paradigma despontava no horizonte: o da sociedade global.

De lá para cá, muita coisa mudou. Se o avanço da globalização e do multilateralismo sinalizava uma soberania compartilhada, 20 anos depois o cenário se inverteu. Choques sucessivos reergueram barreiras e devolveram aos Estados um papel central.

A crise de 2008 foi o primeiro sinal dessa inflexão. O colapso dos mercados financeiros revelou como turbulências podiam se propagar rapidamente por sistemas interconectados. O comércio internacional recuou 12% em 2009. O G20 ocupou o centro do palco e garantiu estímulos equivalentes a 1,8% do PIB global, mostrando que, quando a situação apertava, eram os cofres nacionais que pagavam a conta.

Depois, a pandemia de covid-19 expôs a vulnerabilidade das cadeias globais de valor. O PIB mundial caiu 3,5% em 2020. Máscaras cirúrgicas tornaram-se moeda diplomática, e cargas de equipamentos médicos foram desviadas em aeroportos. O modelo just-in-time perdeu espaço, sendo substituído por estratégias de redundância, com conceitos como reshoring e friend-shoring orientando políticas industriais e comerciais. O custo aumentou, mas a prioridade passou a ser reduzir riscos e reforçar a resiliência.

A invasão da Ucrânia pela Rússia, em 2022, foi mais um golpe. Sanções coordenadas — como a exclusão de bancos russos do sistema SWIFT e limites ao preço do petróleo — mostraram que a interdependência pode ser usada como arma. O corte no fornecimento de gás à Europa evidenciou a facilidade com que laços econômicos se transformam em instrumentos de pressão geopolítica.

Nesse ambiente, organizações internacionais se enfraqueceram, e o multilateralismo recuou. A eleição de Donald Trump em 2016 desencadeou um populismo protecionista, caracterizado por barreiras alfandegárias e migratórias e pela revisão de acordos. Em seu segundo mandato, essas medidas têm se intensificado. A OMC, que poderia ajudar a reverter esse quadro, continua com seu órgão de apelação paralisado desde 2019.

Na integração regional, os resultados são variados. O -Nafta foi substituído pelo USMCA em 2020, mas as tarifas impostas pelos Estados Unidos ao México e ao Canadá causam instabilidade. O Brexit mostrou em 2016 que nem a União Europeia está imune a abalos. Antes disso, a crise da zona do euro entre 2010 e 2012 havia revelado a fragilidade de uma união monetária sem união fiscal. Poucos blocos surgiram, destacando-se o Acordo Abrangente e Progressivo para a Parceria Transpacífico (CPTPP) — assim rebatizado em 2018 após a saída dos EUA do pacto original — e a Área Continental Africana de Livre-Comércio (AfCFTA), em operação desde 2021. O Mercosul pouco progrediu.

A sustentabilidade ganhou destaque, e o Acordo de Paris, de 2015, tornou-se um marco no combate às mudanças climáticas, ao alinhar 195 países ao objetivo de limitar o aquecimento global a 1,5 °C. Ainda assim, permanecemos distantes de metas compatíveis com essa ambição — contexto agravado pela segunda retirada dos EUA do acordo, anunciada no começo do ano. Outro vetor central foi a ascensão da China, cujo PIB nominal saltou de 2,3 trilhões de dólares em 2005 para mais de 19 trilhões de dólares em 2025, a posicionando como segunda economia mundial.

As previsões do livro sobre o aumento do protagonismo das empresas transnacionais e o impacto da internet se confirmaram, com os gigantes da tecnologia agora no topo do mercado. A economia migrou dos ativos tangíveis para os intangíveis, que em 2020 já representavam 90% do valor do S&P 500. O lançamento do iPhone, em 2007, popularizou os computadores de bolso. Com 5G, computação em nuvem e big data, emergiram plataformas digitais que intermedeiam informação, consumo e trabalho em escala global. Desde 2022, a IA generativa foi incorporada à vida das pessoas e vem reformulando modelos de negócios em ritmo acelerado.

As disputas geopolíticas passaram a envolver dados e algoritmos. Leis de residência de dados e a corrida por data centers revelam as novas fronteiras da soberania digital. A concentração de poder nas big techs gerou respostas dos Estados. A União Europeia aprovou legislações como o -Digital Markets Act e o AI Act, impondo regras de transparência algorítmica e gestão de riscos. Nos EUA, o Departamento de Justiça obteve vitórias em ações antitruste. Governos também reagem à expansão dos criptoativos — que pressionam a lógica da soberania monetária — por meio do desenvolvimento de moedas digitais próprias, testadas em mais de 130 jurisdições.

As fronteiras da humanidade continuam em transformação. O Estado procura mostrar que ainda é o dono da bola, e ameaça colocá-la debaixo do braço e acabar com o jogo se os outros não se comportarem. É a soberania nacional, que persiste e resiste. A interdependência, no entanto, segue incontornável. Nos últimos 20 anos, sua importância foi renovada pela necessidade de enfrentar questões como as mudanças climáticas e a inteligência artificial — que, por seu caráter transfronteiriço, exigem mais governança global, não menos. Daqui a duas décadas — ou quem sabe antes disso — saberemos se estivemos à altura desses desafios.

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