Nenhuma alternativa oferece todas as virtudes do dólar, sendo sua completa substituição uma impossibilidade no horizonte tangível (Akinbostanci/Getty Images)
Colunista
Publicado em 24 de outubro de 2025 às 06h00.
Nunca comprei a história do sonho grande. Para cada -coach bem-sucedido, há um cemitério de fracassados. A exceção do bilionário esconde a regra da maioria malfadada. Os mortos, aqueles que ficaram pelo caminho, não têm motivo para seguir na literatura — Brás Cubas é um personagem ficcional, vale lembrar. Defender a perseguição do sonho grande é desafiar a distribuição de probabilidade. O problema dos eventos raros é que eles são… raros. Como uma prescrição para as massas, a defesa da super-realização é uma impossibilidade lógica.
No livro O Filho Rico, desenvolvi o conceito de paixão pragmática. A opção profissional deveria ser pautada, sim, por afinidade, pela noção de pertencimento e sentido. Mas que esse “gostar” não pertença ao campo platônico, das impossibilidades probabilísticas, do inatingível. Uma combinação eficiente do amor pessoal com o pragmatismo financeiro. Ao mesmo tempo, se você detesta uma atividade dinheirista, o esgotamento de sua saúde psíquica penalizará a produtividade; ainda que não o faça, ser um rico deprimido não parece convidativo.
Embora nutra simpatia e interesse por investimentos, meu sonho era ser guitarrista. O auge de minha trajetória musical foi numa banda cover do Rush, o virtuoso power trio canadense. Comemorei o retorno do Rush a partir do anúncio da nova baterista. A banda nos remete ao virtuo-sismo dos anos 1970. Eram tempos de instabilidade social, engajamento político-cultural, discurso pacifista. A semelhança com os dias atuais pode não ser mera coincidência.
Foi em 1971 que Richard Nixon pôs fim ao sistema de Bretton Woods, do fim da conversibilidade do dólar ao ouro e da série de desvalorizações das moedas fiduciárias a partir do abandono forçado de regimes de câmbio fixo. Seguiu-se um processo de aceleração inflacionária. O episódio ficou marcado pela famosa expressão de John Connally, secretário do Tesouro dos Estados Unidos. Quando questionado por outros países sobre a desvalorização da moeda americana, respondeu: “O dólar é a nossa moeda e seu problema”.
Num paralelo claro entre os períodos, o novo livro de Kenneth Rogoff, ex-economista-chefe do FMI, recebe o nome Our Dollar, Your Problem e propõe uma investigação sobre a hegemonia do dólar e alternativas à frente.
A situação atual mostra uma trajetória de dívida preocupante dos EUA, sendo o shutdown do governo apenas o sintoma de doença mais grave: o impasse do conflito distributivo. Em sociedades que vivem além de seus meios desde a crise de 2008 e, sobretudo, desde a pandemia, vale a máxima de Milton Friedman: não há nada mais permanente do que um gasto temporário do governo. O governo dos EUA entra em paralisação, a França vê a sexta queda de seu primeiro-ministro por discussões orçamentárias, o Brasil veta a MP no 1.303. Variações do mesmo tema sem sair do tom.
A fuga de investidores das moedas de países cujas dívidas crescem aceleradamente, sob o temor de que seu valor acabe sendo erodido no tempo, recebe o nome de “debasement trade”. E a desconfiança com a trajetória da dívida é apenas um dos fatores por trás da fraqueza recente do dólar.
A incerteza gerada pelo Trumpnomics, o reordenamento geopolítico global, a guerra comercial, a ameaça chinesa à liderança dos EUA em inteligência artificial a partir do efeito DeepSeek, o enfraquecimento do “rule of law” no mundo e os machucados impostos às instituições canônicas da democracia liberal que conduziram à hegemonia americana trazem o questionamento sobre a preservação do excepcionalismo dos EUA. O dólar sofre.
A tudo isso, soma-se a política monetária. O Fed deve cortar sua taxa básica mais duas vezes neste ano e possivelmente estender o relaxamento em 2026. Mais preocupante é a crescente desconfiança sobre a independência do Banco Central dos EUA. Emerge, então, uma pergunta-corolário: qual seria o substituto do dólar?
O euro seria o candidato histórico natural. No entanto, a construção de uma Zona Monetária Ótima (mesmo juro, mesmo Banco Central e mesma moeda) deveria requerer também uma unificação fiscal. Como cada país mantém sua soberania, isso é impensável, porque os orçamentos públicos são definidos em âmbito nacional. A falta de coordenação entre política monetária e fiscal atrapalha. Ao mesmo tempo, é muito mais fácil para o Fed administrar questões entre, sei lá, Califórnia e Virgínia do que o BCE ter de arbitrar sobre o gerenciamento de títulos da Grécia e da Alemanha. Ainda que o euro seja uma grande conquista social e política, ainda carece de várias virtudes para ser um antagonista à altura do dólar, sobretudo quando consideramos a baixa taxa de crescimento do Velho Continente há décadas.
Vamos ao segundo desafiante: o iene. Também aqui temos restrições ao crescimento — a demografia, as baixas taxas de consumo e o declínio do retorno marginal do capital investido são restrições à expansão. Ademais, a relação dívida sobre PIB no Japão marca 250%.
Então, chegamos ao grande desafiante do momento: o iuan. O primeiro empecilho é que a China passa por processo semelhante ao visto no Japão. A população poupa muito e dificilmente vai consumir em níveis semelhantes ao Ocidente. O país sofre ainda com as mazelas da política do filho único, e o bônus demográfico não existe mais. Há taxas, impostos, barreiras e burocracia para converter a moeda chinesa em outra divisa. Isso restringe sua capacidade de virar a grande referência internacional.
Podemos até caminhar para, em termos relativos, a perda da importância do dólar para outras moedas fiduciárias, num mundo multipolar de várias divisas ocupando certo espaço. Nenhuma alternativa oferece todas as virtudes do dólar, sendo sua completa substituição por outra moeda fiduciária uma impossibilidade no horizonte tangível.
Isso explica em parte o rali recente do ouro, que renova máximas sucessivas acima de 4.000 dólares. Curiosamente, o último rali tão intenso do metal foi exatamente entre 1978 e 1980, quando os preços se multiplicaram por mais de quatro vezes, saindo de 200 para 850 dólares por onça. Antes disso, uma grande disparada ocorrera em 1934. Sob o “Gold Reserve Act”, de Roosevelt, o ouro foi reavaliado de 20,67 dólares para 35 dólares por onça. Desnecessário lembrar como terminamos a década de 1930.
Há gente boa antevendo o dólar a 6.000 dólares por onça no próximo outono no Hemisfério Norte. Talvez aqui caiba uma adaptação do clássico de Churchill: o dólar é a pior moeda existente, exceto por todas as outras formas de moe-da fiduciária. Estar pessimista com as principais moe-das fiduciárias é, de alguma forma, estar otimista com o ouro principalmente e um pouco com criptomoedas.
A terceira corrida do ouro pode estar apenas começando.