Marcos Galperin e Ariel Szarfsztejn do Mercado Livre: sucessão estudada (Leandro Fonseca /Exame)
Diretor de redação da Exame
Publicado em 27 de novembro de 2025 às 06h00.
Última atualização em 27 de novembro de 2025 às 11h30.
O argentino Marcos Galperin, de 54 anos, criou o Mercado Livre 26 anos atrás, quando a internet ainda engatinhava. Agora, se prepara para passar o bastão ao compatriota Ariel Szarfsztejn, de 44 anos, num momento de euforia com o avanço da inteligência artificial.
A partir de 2026, -Szarfsztejn passa a comandar um negócio de 120.000 funcionários e que todos os meses atende 130 milhões de clientes. Com mais de 100 bilhões de dólares de valor de mercado, o Meli é a empresa mais valiosa da América Latina.
Mas vale uma pequena fração das maiores empresas de tecnologia do planeta. Qual o tamanho da ambição? E quais os maiores desafios no curto e no longo prazo?
A dupla falou com a reportagem da EXAME ladeada por Fernando Yunes, à frente da operação brasileira, no escritório da companhia em São Paulo.
A troca oficial no comando será só no início de 2026? Algo já mudou na rotina de vocês?
Marcos: Tudo. No Mercado Livre fizemos o anúncio e falamos num período de transição, que na prática durou uma semana. Rapidamente Ari começou a liderar e entendemos que ele é o novo CEO. Estamos aprendendo nossos novos papéis. Mas ontem tivemos uma reunião de diretoria e Ari fez toda a liderança da reunião.
Marcos, você esperava ficar 26 anos na presidência-executiva?
Marcos: Eu imaginava que o Mercado Livre seria bem grande. No dia zero eu não estava pensando na transição, mas, à medida que fui ficando mais velho e comecei a ver muitas empresas de tecnologia custarem muito a fazer uma transição de fundador a um novo CEO, comecei a entender, junto com o board, que precisava de um plano. Sou muito perfeccionista e quero que o Mercado Livre seja a melhor empresa da América Latina. Para isso, a empresa precisa funcionar sem o fundador.
Como foi desenhado o plano de sucessão?
Marcos: Primeiro tivemos que identificar pessoas com as características para ser meu sucessor. Depois que identificamos, precisamos desenvolver suas habilidades. Ari tinha um papel mais júnior, então fizemos mudanças para que ele se tornasse CEO do market place do Mercado Livre. Depois pedimos que começasse a falar com todos os investidores, em viagens trimestrais com nosso CFO, para que todos os principais acionistas do Mercado Livre o conhecessem pessoalmente. Hoje, conhecem a ele melhor que a mim.
O fato de ser alguém interno mostra que essa sucessão não significa uma guinada para a empresa…
Marcos: Para mim, se o sucessor fosse alguém externo, seria um sinal de fracasso pessoal meu. Porque para mim sempre foi muito importante trabalhar com pessoas que acho que são melhores do que eu. Então, se quando eu for dar um passo para o lado ninguém puder tomar esse lugar, eu terei fracassado em contratar pessoas que são melhores do que eu.
Sua rotina como está, Marcos? Você já sabe como é ser chairman, e não mais presidente-executivo?
Marcos: Vou aprender, assim como aprendi a ser CEO. Quando eu virei CEO pela primeira vez, em 1999, nunca tinha tido um funcionário respondendo diretamente para mim em toda a minha vida. Eu tinha sido analista, soldado raso. Passei disso a CEO de uma empresa de quatro caras numa garagem. Depois tive de aprender a ser CEO de uma empresa cada vez maior, de uma empresa listada. Agora estou aprendendo a ser executive chairman. E estou muito feliz de ter mais tempo livre. Quero ler mais, me dedicar à família, a mim, minha saúde. O mercado de tecnologia me fascina. Passo tanto tempo vendo vídeos de IA, vejo que há tanto para aprender, que também quero me dedicar a isso.
Ariel, você chega a uma empresa num momento de maior competição no Brasil e na América Latina. Qual sua análise sobre esse cenário?
Ariel: Acredito que o contexto é supercom-petitivo. O e-commerce no Brasil é um dos mercados mais disputados do mundo. Mas em 25 anos sempre competimos muito. No começo era com outras startups tentando armar sua plataforma de e-commerce. Depois eram varejistas locais tentando construir seu market place e competir online. Depois era a concorrência com os americanos. Depois com os asiáticos. Sempre houve grande competição, especialmente no Brasil. Ainda somos muito pequenos. Se você olhar o varejo total do Brasil, o Mercado Livre ainda é 5%. Temos uma cota grande do varejo online. Mas a penetração do online no varejo total ainda é de 14%, enquanto na China é de 35%.
Analistas veem este como um momento em que a empresa decidiu investir em ações como frete grátis para ganhar terreno diante da concorrência. É assim que vocês veem?
Ariel: Eu vejo de forma diferente. Nós não estamos investindo por causa da competição, mas pelas oportunidades que temos. Pelas respostas dos usuá-rios a cada vez que oferecemos mais entregas gratuitas. Fomos percebendo que os usuá-rios querem mais e melhores serviços do Mercado Livre. Querem envios grátis, querem os melhores meios de pagamento, a melhor seleção, os melhores preços. Vemos uma oportunidade de mercado que não estávamos conseguindo atender da melhor forma ante a enorme demanda por produtos baratos. Vimos que fazia todo o sentido do mundo investir pensando no longo prazo.
Os asiáticos e a Amazon são muito fortes em anúncios (ads) e em retail media. Quais as vantagens competitivas de vocês nessa frente?
Ariel: Acredito que a nossa plataforma de anúncios, que gerou faturamento de 1,5 bilhão de dólares neste ano, ainda é muito pequena na comparação com nosso negócio de e-commerce. A proporção da receita de anúncios diante das mercadorias vendidas em outros negócios está em torno de até 8%, enquanto no Mercado Livre gira em 2%.
No Brasil vocês ainda não são líderes entre as fintechs. Qual é o tamanho da ambição nesse mercado?
Ariel: Como tudo no Mercado Livre, gostamos de ganhar. Queremos ser o maior provedor de serviço financeiro digital da América Latina. Essa é nossa visão. Não imaginamos uma companhia separada. O Mercado Pago é melhor tendo o Mercado Livre ao lado, e o Mercado Livre é melhor tendo o Mercado Pago ao lado. As sinergias que geram para o ecossistema são gigantescas. A oportunidade para gerar inclusão financeira é enorme. A oportunidade para servir melhor os usuários que já estão no sistema financeiro também é gigante. Estamos convencidos de que temos o talento e os recursos para chegar lá.
Há uma dúvida mais ampla de até que ponto o Mercado Pago é um Nubank dentro da plataforma Meli…
Marcos: O que é Nubank? Não conheço…
Então é um competidor direto?
Ariel: Vamos ser os provedores de serviços financeiros mais relevantes da América Latina e estamos convencidos disso.
No Brasil temos essa situação urgente de que os Correios precisam de pelo menos 10 bilhões de reais de aportes. Qual o tamanho da ambição do Mercado Livre em logística no curto prazo?
Ariel: Nós temos de continuar tendo a melhor rede logística do Brasil e da América Latina. Somos os mais rápidos, somos os mais confiáveis, somos os mais eficientes, e os mais escaláveis. E isso é muito. Precisamos sustentar isso no tempo. Temos de continuar servindo o usuário da melhor forma: se dizemos que o pacote chega amanhã, é amanhã; não é nem hoje nem depois de amanhã. Construímos isso com muita tecnologia para conectar milhares de prestadores e pessoas que atuam numa rede sofisticada e complexa. Essa tecnologia decidimos desenvolver internamente, e não comprar fora.
Esse crescimento continuará de forma orgânica?
Ariel: Sim. Acredito que nosso caminho é seguir a rota muitas vezes mais difícil, mas que nos leva ao melhor resultado, que é sermos donos de nossas soluções, de nosso soft-ware, de nossa tecnologia. Em vez de nos distrairmos com atalhos que às vezes parecem que nos ajudam a cortar caminho, mas no fim continuam sendo mais complexos.
Ainda falando em Brasil, o Mercado Livre recentemente comprou uma farmácia e ampliou suas ambições em saúde. Como vocês veem o rol de possibilidades de novas verticais para os próximos anos?
Ariel: Acredito que voltamos ao ponto de partida. Nosso foco está em servir e atender às necessidades de nossos usuários. O mercado de saúde tem muita demanda e muita necessidade de serviços melhores, em termos de experiência de compra e entrega. Acreditamos que podemos trazer valor dando acesso a qualquer pessoa aos remédios de que necessitam. Nossa missão é conectar um monte de farmácias aos compradores. Hoje, a legislação nos traz algumas limitações. Mas nosso foco está em atender melhor os usuários, para que supram as necessidades que têm todos os dias.
O Mercado Livre continuará sendo uma empresa latina? Ou em um, cinco ou 20 anos vai atuar em outras geografias?
Ariel: Somos uma empresa construída por latino-americanos e focada na América Latina. E a oportunidade de crescer e transformar a vida dos latino-americanos é tão grande que não faz sentido ir buscar outras regiões. Temos tudo por fazer em serviços financeiros, em e-commerce, temos muita gente para seguir servindo no interior dos países em que operamos. O Mercado Livre existe em muitos países. Mas isso não significa que exista Mercado Envios, Mercado Pago.
Que impactos concretos a inteligência artificial traz para o negócio? A tecnologia vai levar a reduções no número de funcionários, por exemplo?
Ariel: Acreditamos que a inteligência artificial é o presente. Como empresa, abraçamos a IA em todas as suas dimensões. Há 15 anos usamos IA para armar algoritmos de prevenção de fraudes, em sistemas de recomendações, nas rotas de entrega. Quando a IA generativa tomou escala, a incorporamos à nossa experiência, com fotos melhoradas com IA, melhores buscas com IA. Agora lançamos no Brasil nosso primeiro agente de serviços financeiros com IA. Tudo isso está transformando a experiência dos usuários. Todos os nossos devs usam IA para gerar códigos mais rápidos e melhores, mas não queremos reduzir o número de desenvolvedores. Queremos que nossos 20.000 devs produzam mais, porque são nosso recurso mais escasso.
Vocês veem a IA como um momento comparável à chegada da internet?
Ariel: Sou tecno-otimista. A IA potencialmente é mais forte do que a internet pela velocidade de mudança. A internet levou seu tempo para tomar escala. A inteligência artificial penetra a uma velocidade muito mais alta.
A IA pode eliminar os empregos mais simples e aumentar a desigualdade na sociedade, segundo algumas visões mais pessimistas. O que vocês acham?
Marcos: Acho essa visão muito triste. Há pessoas que tentam buscar a parte negativa de tudo. Hoje, qualquer pessoa com acesso à internet tem acesso à melhor educação do mundo. A internet democratizou a educação e muitas coisas a que antes só uns poucos tinham acesso. Agora com IA qualquer um vai ter acesso ao melhor médico do mundo, ou ao melhor advogado do mundo. Por que buscar a parte negativa? Claro que haverá coisas negativas. Mas eu vejo mil coisas positivas antes de uma negativa. As sociedades nunca foram mais igualitárias do que agora. Uma pessoa de classe média hoje vive melhor que um rei na Europa há 500 anos. Tem acesso a água quente, conhecimento, comida, ar-condicionado.
A Nvidia chegou a 5 trilhões de dólares de valor de mercado. O Mercado Livre tem a ambição de ser um gigante global? Já está nesse caminho?
Ariel: No Mercado Livre não se fala de quanto valem as ações, de quanto vale a companhia. Isso não está presente em nenhuma conversa na empresa. Mas todos os dias se fala de como o usuário pode nos entender melhor. Como podemos dar mais crédito, como fazer com que a conta remunerada do Mercado Pago renda ainda mais. Essas são as conversas. A evolução vai vir sozinha.
Quando falamos de riscos, um deles é o risco sistêmico de operar na América Latina. Como isso entra na conta?
Marcos: Nós focamos em gerar valor para as pessoas. Hoje, 130 milhões de pessoas usam o Mercado Livre todos os meses. Isso nos dá certa imunidade aos vaivéns da América Latina. Quando revisamos os resultados de alguma operação, não aceitamos a justificativa macroeconômica. Nós estamos agradecidos à América Latina. Continuamos operando até mesmo na Venezuela. Veja o exemplo do Chile, que teve eleições agora. Chegamos ao Chile em 2000 e perdemos dinheiro até 2019. Tentamos de tudo. Aí veio a covid-19 e crescemos sete vezes de lá para cá. Ficamos 20 anos apostando, com todo tipo de governo, de centro-esquerda, de esquerda, de direita, de centro-direita. Vamos pelo longo prazo.

