Revista Exame

'Inteligência Ambiental': como a IA ajuda no combate às mudanças climáticas

Tecnologias baseadas em IA viraram aliadas do clima. Juntas, as climate-techs podem gerar valor de US$ 2,6 trilhões até o fim da década

Enchente em Porto Alegre: inteligência artificial pode ajudar a prever eventos extremos (Leandro Fonseca/Exame)

Enchente em Porto Alegre: inteligência artificial pode ajudar a prever eventos extremos (Leandro Fonseca/Exame)

Publicado em 20 de março de 2025 às 06h00.

No coração da Mata Atlântica, na cidade mineira de Cana Verde, uma floresta digital começa a tomar forma.

Em uma área de 500 hectares, onde o desmatamento comprometeu o solo por 500 anos, 300.000 mudas foram plantadas e são monitoradas por um sistema que combina satélites, drones e inteligência artificial.

As árvores são parte de um experimento que busca transformar reflorestamento em mercado: cada planta ganha um registro digital único, atrelado a um token negociável via blockchain, mesma tecnologia das transações com criptomoedas, como o bitcoin.

A floresta conectada é um projeto da Abundance Brasil, climate tech que pretende tornar a compensação ambiental mais rastreável e escalável. A empresa criou um modelo em que cada árvore equivale a um Abundance Token, criptoativo comercializado por empresas que buscam neutralizar emissões de carbono.

Já foram vendidos 10.500 tokens, a 20 dólares cada, gerando receita para produtores rurais responsáveis pelo plantio. A lógica é direta: uma árvore se desenvolve, absorve CO₂ e gera um crédito digital certificado.

O desafio é escalar o modelo. “A tecnologia precisa transformar a preservação em um modelo de negócios real, algo que funcione tanto para investidores quanto para quem cuida da terra”, afirma Pedro Miranda, CEO da Abundance Brasil. A meta da startup é chegar a 1 bilhão de árvores plantadas até 2030.

Além de ajudar a reduzir o impacto das emissões de carbono, a Abundance Brasil planeja gerar milhares de empregos verdes até o final da década.

Esses postos de trabalho envolverão profissionais como plantadores, biólogos, engenheiros agrônomos, engenheiros florestais, arquitetos florestais e especialistas em ESG. Cinquenta pessoas já estão empregadas nas florestas criadas pela Abundance no estado de Minas Gerais.

O clima, infelizmente, está bom para as climate techs. O aquecimento de 1,1 grau Celsius acima dos níveis pré-industriais, segundo dados do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), causou aumento do nível do mar e a redução do gelo marinho na Antártida.

No Brasil, o número de desastres aumentou mais de 462% desde a década de 1990. Startups focadas em soluções climáticas baseadas em inteligência artificial arrecadaram 6 bilhões de dólares em financiamento de capital de risco nos primeiros três trimestres de 2024, superando o total de 5 bilhões de dólares arrecadados em todo o ano de 2023, segundo a PwC.

Projetar o futuro, uma das forças da IA, é especialmente relevante para quem lida com as mudanças climáticas. A ClimateAi, startup do Vale do Silício, desenvolveu um sistema preditivo que consegue antecipar padrões climáticos extremos com até um ano de antecedência.

A tecnologia vem sendo usada por grandes produtores agrícolas para evitar perdas com secas e geadas — eventos cada vez mais frequentes no Brasil. “A questão não é se um desastre vai acontecer, mas quando e onde”, diz Will Kletter, COO da ClimateAi. “Com dados precisos, conseguimos salvar safras, reduzir desperdícios e economizar milhões de litros de água.”

O modelo analisa milhares de variáveis, desde alterações na temperatura dos oceanos até mudanças sutis nos padrões de vento, e cria alertas antecipados para agricultores, governos e empresas. Já foi testado nos Estados Unidos, onde previu o impacto de furacões, permitindo que suprimentos fossem posicionados antes das tempestades. Poderia ter sido usado, por exemplo, no Rio Grande do Sul, em maio de 2024, quando o estado enfrentou a pior enchente de sua história.

Prever desastres é apenas parte da equação. A outra é medir o impacto — e a Vankka, startup criada em Curitiba, investe para tornar esse processo mais exato e acessível.

A empresa criou um software de IA que calcula o balanço de carbono de áreas agrícolas e florestais, identificando não apenas as emissões mas também quanto CO₂ é retirado da atmosfera. Hoje, a -tecnologia é utilizada no setor automotivo e ajuda montadoras a quantificar emissões e compensá-las com créditos de carbono.

No mercado financeiro, a ferramenta auxilia bancos a calcular o impacto ambiental das empresas que financiam. “O Brasil tem uma escassez histórica de dados ambientais de alta qualidade”, afirma Clarissa Menezes, fundadora e CEO da Vankka. “Isso impacta tanto o desenvolvimento de modelos de IA quanto a antecipação de crises climáticas.”

Data Center na China: IA já consome 1% da energia mundial, com viés de alta (Costfoto/NurPhoto/Getty Images)

Um dos mercados com mais potenciais de ganhos para as climate techs é o de energia. A BrainBox AI, startup canadense, desenvolveu um sistema que ajusta automaticamente o consumo elétrico em prédios comerciais e residenciais, reduzindo em até 40% a demanda energética.

A tecnologia, chamada de grid-interactive efficient buildings (GEBs), transforma edifícios em baterias térmicas interconectadas.

O sistema analisa o fluxo de energia da rede e ajusta o uso de eletricidade com base nos horários de maior demanda. “Criamos uma rede de prédios que otimiza o consumo de energia de forma automática, reduzindo a pressão sobre a infraestrutura elétrica e ajudando a evitar apagões”, explica Jean-Simon Venne, CTO da BrainBox AI. Combinado ao uso de fontes renováveis, o modelo tem potencial para diminuir significativamente as emissões de carbono associadas ao consumo urbano.

Jean-Simon Venne, da BrainBox: ajuste automático do consumo de energia em edifícios (Brainbox/Divulgação)

O papel dos governos

A inteligência artificial, como se vê, já traz ganhos mensuráveis, mas pode causar impactos maiores com estratégias governamentais estruturadas.

Dora Kaufman, pesquisadora dos impactos sociais da IA na PUC-SP, diz que o maior desafio não está na falta de inovação, mas na ausência de políticas públicas eficazes para transformar as soluções em ações concretas.

“Precisamos de políticas, e não apenas de experiências isoladas, geralmente lideradas pelo setor privado. As soluções existem, mas falta vontade governamental para integrá-las”, diz.

Incêndio na Califórnia: aquecimento de 1,1 °C do planeta abre mercado para a inovação (David McNew/Getty Images)

Na União Europeia (UE), o incentivo a investimentos em aplicações de IA com alto retorno social e ambiental é uma das prioridades, acompanhado de esforços para regular o consumo energético da tecnologia e garantir que centros de dados utilizem energia renovável e algoritmos mais eficientes.

Para isso, a UE pretende investir 200 bilhões de euros. O Reino Unido está eliminando gradualmente usinas elétricas movidas a carvão e utilizando mecanismos de precificação de carbono — a inteligência artificial é aplicada para otimizar a transição.

Na Noruega, políticas ambientais aceleraram a substituição de carros a combustão por veículos elétricos. Em 2024, eles representaram 88,9% das vendas de novos carros no país.

No Brasil, iniciativas como o plano “IA Para o Bem de Todos”, anunciado pelo Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CCT) em 2024, visam impulsionar tecnologias verdes.

Com plano de investimento de 23 bilhões de reais até 2028, a ideia é desenvolver a infraestrutura, formar profissionais e melhorar os serviços públicos. Alguns dos principais projetos incluem a aquisição de supercomputadores, o desenvolvimento de modelos de IA em português e a criação de uma infraestrutura nacional de dados.

Um próximo passo é uma governança global para integrar as iniciativas. A Organização das Nações Unidas estabeleceu, em 2023, a iniciativa #AI4ClimateAction, focada no papel da inteligência artificial como aceleradora de ações climáticas transformadoras em países em desenvolvimento.

Muitas dessas estratégias continuam nos estágios iniciais. O desafio do poder público, agora, é garantir que o uso da tecnologia seja ampliado, regulado e transformado em impacto real para o meio ambiente.

Apesar dos avanços, a IA enfrenta um paradoxo ambiental: seu próprio impacto energético. O treinamento do modelo GPT-3, por exemplo, emitiu 502 toneladas de CO₂ em 2020, o equivalente a 250 voos entre Nova York e Londres.

Data centers que alimentam esses sistemas já consomem 1% da eletricidade mundial, e a previsão é de que esse número dobre até 2026, segundo a International Energy Agency (IEA).

Já uma resposta da DeepSeek gasta cerca de 17.800 joules de energia, o que equivale aproximadamente à energia elétrica necessária para assistir a um vídeo de 10 minutos no YouTube. Para Fabro Steibel, diretor-executivo do ITS-Rio, no entanto, a conta é distorcida.

“Os ganhos de economia de carbono com o uso da IA são muito maiores do que os impactos do seu consumo energético. A questão é acelerar o uso responsável, priorizando data centers movidos a energias renováveis e modelos mais eficientes.”

Clarissa Menezes, da Vankka: software calcula o balanço de carbono de áreas agrícolas e florestais (Vankka/Divulgação)

Se bem aplicada, a IA pode ajudar a prever desastres, otimizar redes energéticas e promover a recuperação ambiental. Mas, sozinha, a tecnologia não salvará o planeta.

A solução depende de ações coordenadas entre governos, empresas e sociedade para garantir que a inovação seja um motor real de transformação. Quanto mais ambiental for a inteligência artificial, melhor para todos.

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